Clovis Renato Costa Farias
Regina Sonia Costa Farias
RESUMO: Este artigo examina o papel do Poder Judiciário diante da recusa arbitrária de sindicatos patronais ou membros da categoria econômica em participar do processo de negociação coletiva trabalhista. O tema revela-se especialmente relevante à luz do IRDR nº 1000907-30.2023.5.00.0000, em trâmite no Tribunal Superior do Trabalho (TST), que discute a possibilidade de reconhecimento do comum acordo tácito para a instauração de dissídio coletivo de natureza econômica. A análise parte dos princípios constitucionais da boa-fé objetiva, função social da negociação coletiva e vedação ao comportamento contraditório, bem como de normas internacionais como a Convenção nº 98 da OIT. Sustenta-se que o Poder Judiciário possui um papel ativo na garantia da efetividade da negociação coletiva, sendo legítima a superação da exigência formal do comum acordo quando constatada conduta abusiva, injustificada ou obstrutiva por parte da categoria econômica.
PALAVRAS CHAVES: Negociação Coletiva; Boa-fé Objetiva e Comum Acordo.
SUMÁRIO: I. Introdução; II. Supremacia da Constituição e dos Direitos Fundamentais Aplicáveis às Relações Coletivas de Trabalho; III.Da Origem Histórica do “Comum Acordo” e dos Limites de sua Aplicação: a Boa-fé Objetiva como Vetor de Interpretação; IV. Organização Internacional do Trabalho e a Convenção nº 98 Ratificada pelo Brasil em Consonância com a CLT. Dissídio Coletivo fomenta a Negociação e não pode ter natureza reduzida. A) A. Natureza Sui Generis do Dissídio Coletivo segundo a CLT; B) A Recompilação de Decisões do Comitê de Liberdade Sindical da OIT; C) Da conformidade internacional: A Legitimidade Sindical à luz das Convenções nº 98 e nº 154 da OIT; V. Organização dos Estados Americanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos; VI. Considerações Finais. VII. Referências.
A negociação coletiva é instrumento essencial à regulação das condições de trabalho e à promoção do equilíbrio entre os interesses das categorias profissionais e econômicas. No ordenamento jurídico brasileiro, esse processo encontra fundamento nos artigos 7º, XXVI, e 8º, III e VI, da Constituição Federal, que consagram a valorização dos acordos e convenções coletivas e a obrigatoriedade da atuação sindical no processo negocial.
Contudo, a exigência do “comum acordo” para a instauração de dissídio coletivo de natureza econômica, introduzida pela Emenda Constitucional nº 45/2004 (art. 114, §2º, da CF), tem gerado controvérsias sobre sua aplicação, especialmente diante de condutas patronais que, de forma arbitrária, recusam-se a negociar. A atual tramitação do IRDR nº 1000907-30.2023.5.00.0000, no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, destaca a urgência da definição de uma tese jurídica que concilie a exigência formal do comum acordo com os princípios da boa-fé objetiva, da função social da negociação coletiva e da vedação ao comportamento contraditório.
Neste cenário, o presente artigo propõe-se a analisar o papel do Judiciário na superação da inércia negocial patronal, defendendo a legitimidade do reconhecimento do comum acordo tácito como meio de assegurar o acesso à jurisdição coletiva e preservar a efetividade dos direitos fundamentais sociais. A argumentação desenvolve-se com base no ordenamento constitucional, na legislação infraconstitucional, na jurisprudência do TST e nas normas internacionais ratificadas pelo Brasil, especialmente as Convenções nº 98 e nº 154 da OIT.
SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO E DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS APLICÁVEIS ÀS RELAÇÕES COLETIVAS DE TRABALHO
O sistema constitucional brasileiro estabelece, de forma clara e inequívoca, que a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa são fundamentos da República Federativa do Brasil, conforme o disposto no art. 1º, III e IV, da Constituição Federal/88. Esses fundamentos impõem ao Estado e aos agentes sociais — inclusive sindicatos laborais e patronais — o dever de promover condições para o desenvolvimento econômico, social e humano, mediante relações laborais pautadas pela cooperação, pelo equilíbrio e pela boa-fé.
O art. 7º, XXVI, da Constituição Federal reconhece expressamente as convenções e os acordos coletivos de trabalho como fontes formais de direito, evidenciando a centralidade da negociação coletiva na construção das normas aplicáveis às relações de trabalho. Trata-se, portanto, de comando constitucional que prestigia a autocomposição coletiva como instrumento de concretização dos direitos sociais.
De maneira coerente, o art. 8º, III e VI, da Constituição Federal reforça que cabe ao sindicato a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas (inciso III), e que é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho (inciso VI). Esse dispositivo não apenas legitima, como impõe o dever jurídico de atuação negocial, tanto para os sindicatos laborais quanto para os patronais. Portanto, a recusa arbitrária em negociar configura não apenas descumprimento ético, mas violação frontal de norma constitucional.
O acesso à jurisdição, enquanto cláusula pétrea, está expresso no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, que dispõe: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Este comando se aplica indistintamente a todos os ramos do Direito, incluindo o Direito Coletivo do Trabalho. Logo, nenhuma interpretação pode ser acolhida se resultar em verdadeira blindagem de uma das partes à solução jurisdicional, especialmente quando essa parte recusa, de forma injustificada, participar da via negocial.
No âmbito específico da jurisdição coletiva trabalhista, o art. 114, §2º, da Constituição Federal prevê que, “recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica”. A exigência do “comum acordo” consagrada no texto constitucional jamais pode ser lida como salvo-conduto para a prática de atos de má-fé negocial ou obstrução do diálogo social.
Ao contrário, a própria literalidade do dispositivo condiciona o acesso ao dissídio coletivo apenas quando as partes estão dispostas a tanto, salvo quando houver recusa injustificada à negociação coletiva, hipótese em que se verifica flagrante violação ao dever constitucional de participação obrigatória no processo negocial (art. 8º, VI/CF).
Admitir que uma parte — especialmente o sindicato empresarial — possa se recusar arbitrariamente a participar de negociações, frustrando o exercício do direito coletivo de construção de normas laborais, implicaria subversão dos próprios fundamentos constitucionais do Estado brasileiro.
Portanto, a interpretação harmônica e sistemática dos dispositivos constitucionais — art. 1º, III e IV; art. 5º, XXXV; art. 7º, XXVI; art. 8º, III e VI; e art. 114, §2º, da CF — conduz à conclusão inequívoca de que a recusa arbitrária em negociar viola não apenas o princípio da boa-fé objetiva, mas também a própria Constituição Federal em seu núcleo essencial de proteção dos direitos sociais e do Estado democrático de direito.
A exigência do comum acordo, introduzida pela Emenda Constitucional nº 45/2004, não pode ser interpretada de forma literal e absoluta a ponto de aniquilar o próprio exercício do direito fundamental à jurisdição e à negociação coletiva.
Trata-se de violação direta ao dever de negociar previsto no art. 8º, VI, da Constituição, bem como à função social dos contratos coletivos e à própria boa-fé objetiva, princípio de envergadura constitucional e civil-constitucional, amplamente reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência.
DA ORIGEM HISTÓRICA DO “COMUM ACORDO” E DOS LIMITES DE SUA APLICAÇÃO: A BOA-FÉ OBJETIVA COMO VETOR DE INTERPRETAÇÃO
A exigência do “comum acordo” para o ajuizamento de dissídio coletivo de natureza econômica, prevista no art. 114, §2º, da Constituição Federal, tem origem histórica vinculada às recomendações do Comitê de Liberdade Sindical da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Por ocasião da greve dos petroleiros ocorrida em 1995, que resultou na dispensa de 50 dirigentes sindicais, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) apresentou queixa formal contra o Governo Brasileiro perante a OIT. Na apreciação do caso, o Comitê de Liberdade Sindical formulou ao Estado brasileiro três recomendações centrais:
(a) a reintegração dos dirigentes sindicais dispensados;
(b) a reforma do sistema brasileiro de solução de conflitos coletivos, sugerindo a adoção da arbitragem obrigatória quando solicitada de forma conjunta pelas partes;
(c) a manutenção do dissídio coletivo apenas para casos de greve em atividades essenciais, vislumbrando a progressiva superação do modelo jurisdicional de solução dos conflitos coletivos.
Embora tenha sido cogitada, não prosperou, à época, a proposta de conversão do dissídio coletivo em verdadeira arbitragem estatal, conduzida pela Justiça do Trabalho. A solução intermediária adotada pela Emenda Constitucional nº 45/2004 foi a criação do requisito do “comum acordo”, como condição processual para o ajuizamento de dissídios coletivos de natureza econômica.
No plano doutrinário, essa transformação deu ensejo a distintas interpretações jurídicas quanto à natureza, extensão e constitucionalidade da exigência, entre elas:
(a) a tese da extinção progressiva do poder normativo dos Tribunais, privilegiando exclusivamente a negociação coletiva;
(b) a tese da mitigação do poder normativo, que passaria a possuir natureza análoga à arbitragem estatal;
(c) a tese da manutenção do poder normativo nos demais tipos de dissídios coletivos (jurídico, originário, revisão e declaração);
(d) a tese segundo a qual o “comum acordo” possui caráter facultativo, devendo ceder frente a condutas abusivas;
(e) a tese da inconstitucionalidade da exigência, por afronta direta ao princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da Constituição Federal).
No âmbito jurisprudencial, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) tem consolidado entendimento de que o “comum acordo” constitui pressuposto processual, embora não se exija que tal anuência esteja formalizada no ato do ajuizamento.
A resistência da parte contrária deve ser manifestada de forma expressa na fase de resposta. Quando isso ocorre, e na ausência de circunstâncias excepcionais, o entendimento da Seção de Dissídios Coletivos (SDC) é pela extinção do feito sem resolução do mérito, nos termos do art. 485, IV, do CPC.
A título ilustrativo, neste sentido transcreve-se o recente julgado:
"RECURSO ORDINÁRIO INTERPOSTO PELO SINDICATO PATRONAL SUSCITADO EM DISSÍDIO COLETIVO DE NATUREZA ECONÔMICA. AUSÊNCIA DE COMUM ACORDO PARA A SUA INSTAURAÇÃO. No caso, o sindicato dos empregados instaurou dissídio coletivo de natureza econômica em face do sindicato patronal. O eg. TRT de origem rejeitou a preliminar arguida em defesa e julgou parcialmente procedentes os pedidos, fixando reajuste salarial e demais cláusulas para a sentença normativa. O E. STF, intérprete-mór da Constituição da República, ao julgar a ADI 3423, entendeu pela constitucionalidade da referida exigência do comum acordo, inclusive fixando tese vinculante sobre o tema no julgamento, com repercussão geral, proferido no RE 1002295. Na hipótese vertente, verifica-se que o ajuizamento desta representação coletiva efetivamente não observou o requisito do comum acordo. A parte suscitada arguiu, em sua contestação, preliminar de não observância da exigência disposta no art. 114, § 2º, da Constituição, o óbice consistente na falta de comum acordo. É sabido que com a edição da Emenda Constitucional nº 45/2004, estabeleceu-se novo requisito para o ajuizamento de dissídio coletivo de natureza econômica, qual seja, que haja comum acordo entre as partes. Na situação do processado, de fato houve a discordância expressa da suscitada quanto à instauração do dissídio coletivo, a qual foi feita em momento oportuno, o que, conforme a jurisprudência pacífica desta colenda Seção Especializada, resulta na extinção do processo, sem resolução de mérito, à míngua de pressuposto de constituição e de desenvolvimento válido e regular do feito. Ademais, não se identifica circunstância excepcional que justifique o relevar o comum acordo. Como se vê, não há como se relativizar a exigência em destaque. Precedentes desta colenda Seção. Recurso ordinário conhecido e provido" (ROT-1001009-37.2019.5.02.0000, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Relator Ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, DEJT 18/06/2025).
Contudo, a exigência do “comum acordo” não pode ser interpretada em termos puramente formais, sob pena de verdadeiro abuso de direito processual, em flagrante violação à boa-fé objetiva e à função social das relações coletivas.
Com efeito, quando a entidade sindical patronal se vale do “comum acordo” como mero obstáculo formal pratica conduta que afronta diretamente os deveres de lealdade, cooperação e boa-fé, todos com assento constitucional (arts. 1º, III e IV; 5º, XXXV; 7º, XXVI; 8º, III e VI, da CF).
Conforme leciona a doutrina especializada (NETO, Francisco Ferreira Jorge Neto; CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. Dissídio Coletivo do Trabalho e Ação de Cumprimento (In: Enciclopédia Jurídica da PUCSP, tomo VI, 2020), a invocação vazia do pressuposto do “comum acordo”, desprovida de conteúdo valorativo e desconectada de uma real disposição para dialogar, configura, simultaneamente:
(a) resistência injustificada ao desenvolvimento do processo coletivo, caracterizando comportamento contraditório (venire contra factum proprium);
(b) ato temerário, por instaurar incidente infundado, sem qualquer razoabilidade fática ou jurídica;
(c) abuso de direito processual, em manifesta violação aos deveres de colaboração e ao princípio da boa-fé objetiva.
Portanto, a compreensão sistemática da Constituição e da própria razão histórica do “comum acordo” revela que sua exigibilidade não é absoluta e cega, mas deve ser filtrada à luz da boa-fé objetiva, da vedação ao comportamento contraditório e do princípio da inafastabilidade da jurisdição.
Este é, portanto, o caminho interpretativo que melhor realiza os valores constitucionais do trabalho, da livre iniciativa e da dignidade da pessoa humana, preservando o equilíbrio das relações coletivas e a eficácia da jurisdição coletiva.
Portanto, a compreensão sistemática da Constituição Federal, em conjunto com a própria origem histórica do “comum acordo”, revela que sua exigibilidade não é absoluta nem pode ser interpretada de forma mecânica ou meramente formal, especialmente quando utilizada como instrumento de bloqueio injustificado à jurisdição coletiva e à solução dos conflitos coletivos de trabalho.
A boa-fé objetiva, amplamente reconhecida no ordenamento jurídico brasileiro como princípio estruturante das relações negociais e contratuais, também se projeta sobre o dever constitucional de negociação coletiva, impondo às partes — tanto às entidades sindicais quanto aos representantes da categoria econômica — o dever de:
Lealdade, na condução do diálogo social;
Cooperação, visando soluções eficazes e equilibradas;
Transparência, quanto às informações e intenções negociais;
Vedação ao comportamento contraditório e abusivo, incompatível com a função social da negociação coletiva.
Nessa linha, a recusa infundada, arbitrária ou meramente formal em participar do processo negocial, ou o uso do pressuposto do “comum acordo” como ferramenta de obstrução, configura violação direta à boa-fé objetiva, ensejando claro abuso de direito, e consequentemente conduta ilícita, afrontando também o art. 187 do Código Civil, que repudia o exercício de qualquer direito fora dos limites impostos pela boa-fé e bons costumes.
Permitir que essa conduta continue sendo aceita pelo Poder Judiciário significa não apenas frustrar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV), da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV) e da valorização da negociação coletiva (arts. 7º, XXVI, 8º, III e VI), como também fomenta práticas antissindicais e desestimula gravemente o próprio diálogo social, elemento essencial do modelo constitucional brasileiro de relações coletivas.
IV – ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO E A CONVENÇÃO 98 RATIFICADA PELO BRASIL EM CONSONÂNCIA COM A CLT. DISSÍDIO COLETIVO FOMENTA A NEGOCIAÇÃO E NÃO PODE TER NATUREZA REDUZIDA
A Convenção nº 98 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) estabelece princípios fundamentais para proteção do direito de organização e negociação coletiva, sendo inequívoco que a recusa injustificada de negociar por entidades patronais não pode obstruir o acesso à Justiça do Trabalho. Essa interpretação alinha-se à jurisprudência internacional da OIT e à aplicação do direito brasileiro, conforme detalhado abaixo.
Perceba-se que o Dissídio Coletivo, quando instaurado, encontra-se normatizado como instrumento que fortalece a negociação, inclusive pelo fato de não ser distribuído inicialmente no Tribunal, mas ir ao Presidente do órgão para que faça uma conciliação, que faz com que as partes sentem e, necessariamente, conversem, como forma introdutória à negociação, intermediada pelo Pode Judiciário, com grande perspectiva de avanço. Como se pode notar, verbis:
Art. 860 - Recebida e protocolada a representação, e estando na devida forma, o Presidente do Tribunal designará a audiência de conciliação, dentro do prazo de 10 (dez) dias, determinando a notificação dos dissidentes, com observância do disposto no art. 841.
Parágrafo único - Quando a instância for instaurada ex officio, a audiência deverá ser realizada dentro do prazo mais breve possível, após o reconhecimento do dissídio.
Art. 861 - É facultado ao empregador fazer-se representar na audiência pelo gerente, ou por qualquer outro preposto que tenha conhecimento do dissídio, e por cujas declarações será sempre responsável.
Art. 862 - Na audiência designada, comparecendo ambas as partes ou seus representantes, o Presidente do Tribunal as convidará para se pronunciarem sobre as bases da conciliação. Caso não sejam aceitas as bases propostas, o Presidente submeterá aos interessados a solução que lhe pareça capaz de resolver o dissídio.
Art. 863 - Havendo acordo, o Presidente o submeterá à homologação do Tribunal na primeira sessão.
Art. 864. Não havendo acôrdo, ou não comparecendo ambas as partes ou uma delas, o presidente submeterá o processo a julgamento, depois de realizadas as diligências que entender necessárias e ouvida a Procuradoria.
Atende-se, desse modo, com a instauração de instância, ao fomento à negociação, conforme disposto na Convenção nº 98 da OIT:
ARTIGO 1º
1 - Os trabalhadores deverão gozar de proteção adequada contra quaisquer atos atentatórios à liberdade sindical em matéria de emprego.
[...]
ARTIGO 4º
Deverão ser tomadas, se necessário for, medidas apropriadas às condições nacionais para fomentar e promover o pleno desenvolvimento e utilização de meios de negociação voluntária entre empregadores ou organizações de empregadores e organizações de trabalhadores, com o objetivo de regular, por meio de convenções coletivas, os termos e condições de emprego.
Natureza Sui Generis do Dissídio Coletivo segundo a CLT
O dissídio coletivo possui uma natureza sui generis, pois não se configura apenas como um litígio tradicional, mas sim como um mecanismo que fomenta a negociação coletiva entre empregadores e sindicatos. Essa característica é evidenciada pelos dispositivos da CLT, especialmente nos artigos 860 a 864, que regulam o procedimento do dissídio coletivo.
Instrumento de fomento à negociação: A audiência de conciliação, designada pelo Presidente do Tribunal em até 10 dias após o protocolo da representação (art. 860), não é apenas uma etapa processual, mas uma fase que abre canais para o diálogo e a tentativa de acordo entre as partes.
Pressão institucional para participação sindical: A legislação impõe aos sindicatos a obrigatoriedade de participação na audiência de conciliação prévia, funcionando como um instrumento de pressão para que os dissidentes compareçam e negociem diretamente com o empregador e o Tribunal Regional do Trabalho (TRT).
Função conciliatória e decisória: Na audiência, o Presidente do TRT convida as partes a se manifestarem sobre as bases da conciliação e, caso não haja acordo, submete uma solução que julgar adequada para tentar resolver o dissídio (art. 862). Se o acordo for alcançado, este é homologado na primeira sessão do Tribunal (art. 863); caso contrário, o processo segue para julgamento (art. 864).
Portanto, o dissídio coletivo se distingue por ser uma ferramenta que não apenas resolve conflitos, mas que também estimula a negociação coletiva, garantindo que os sindicatos participem ativamente da audiência de conciliação, o que pode contribuir para a pacificação social e a construção de soluções negociadas no âmbito trabalhista.
Nesses termos, a normatização que viabiliza a proposição de dissídio coletivo, independentemente de “comum acordo”, em caso de resistência arbitrária à negociação, por parte de uma das entidades representativas, atende, ainda, à proteção contra atos antissindicais, incluindo práticas que prejudiquem a liberdade sindical (Art. 1º), uma vez que é da essência do movimento sindical a representação e a negociação coletiva, a qual não pode ser negada de forma arbitrária.
A Recompilação de Decisões do Comitê de Liberdade Sindical da OIT
Conforme destacado na apresentação da obra “Liberdade Sindical - Recopilação das Decisões do Comitê de Liberdade Sindical da OIT”, que traduziu os verbetes das decisões internacionais em 2023, em publicação do Ministério Público do Trabalho, a Organização Internacional do Trabalho, organismo internacional vinculado à Organização das Nações Unidas, possui um importante papel na proteção, promoção e universalização dos direitos humanos e fundamentais do trabalho em todo o mundo, desde a sua criação pelo Tratado de Versalhes de 1919, pós Primeira Guerra Mundial.
Entre as liberdades fundamentais do trabalho, a OIT desenvolveu uma série de programas e ações para o incremento da liberdade sindical, em todas as suas dimensões, individuais e coletivas, positivas e negativas, se destacando as Convenções n. 87, 98, 135, 151 e 154, que não são as únicas a tratar da matéria sindical no âmbito do Código Internacional do Trabalho, mas são indubitavelmente as mais importantes na temática das liberdades sindicais.
Destacam os organizadores que, além de o Código Internacional do Trabalho (convenções e recomendações da OIT) prescrever os princípios de liberdade de associação e sindical, a OIT, com vistas a importância desta matéria, instituiu, em 1951, o Comitê de Liberdade Sindical (CLS), de estrutura tripartite, objetivando garantir a observância dos princípios e regras de liberdade sindical. Assim, afora os procedimentos ordinários de queixas e reclamações à Repartição Internacional do Trabalho (art. 24 a 34 da Constituição da OIT), criou-se um procedimento especial perante o CLS o qual pode ser, inclusive, utilizado de forma simultânea aos demais procedimentos ordinários.
As decisões do CLS têm como base as principais convenções sobre liberdade sindical da OIT e suas conclusões tornam-se importantes instrumentos de concretização dos preceitos de liberdade sindical esposados pela OIT, de forma que o conhecimento do seu conteúdo é de máxima relevância para o incremento da liberdade sindical em todo o mundo. Por essa razão, desde o início da década de 1970, o CLS publica, de tempos em tempos, a recopilação de suas decisões e de seus princípios, denominada, em língua espanhola, “Recopilácion de decisiones y principios del Comité de Liberdade Sindical del Consejo de Administration de la OIT”, sendo que a última edição data de 2018 (sexta edição), a qual temos a honra de trazer à lume, a tradução em língua portuguesa.
Os organizadores esclarecem ainda que a Recompilação, em sua sexta edição, de 2018, reúne, de forma concisa, as decisões do CLS da OIT que examinou mais de 3.200 casos envolvendo os mais diversos aspectos da liberdade sindical e da proteção dos direitos sindicais. Ademais, no Brasil, a disponibilidade em língua portuguesa dos denominados verbetes (de decisão) do CLS ganha maior relevo na dinâmica do incremento do aludido controle de convencionalidade no sistema judiciário nacional, o qual pode ser compreendido como a verificação de adequação e validade de uma norma em cotejo com um tratado internacional sobre direitos humanos, no plano superior, e a lei, no plano hierárquico inferior; devendo-se rememorar que, no ano de 2008, o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do paradigmático Recurso Extraordinário (RE) nº 466.343, alterou seu entendimento, para concluir que os tratados internacionais sobre direitos humanos, ainda que não aprovados pelo rito da Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, estariam, hierarquicamente, abaixo da Constituição Federal e, no entanto, acima da lei.
Nesse contexto, a recusa imotivada à negociação configura violação aos princípios da liberdade sindical, conforme casos históricos em que o Comitê destacou que a negociação deve ocorrer "sem obstáculos artificiais". Para tanto, veja-se os verbetes da Recopilação de Decisões do Comitê de Liberdade Sindical da OIT:
1328. É importante que tanto empregadores como sindicatos participem de boa-fé das negociações e façam todo o possível para chegar a um acordo. A celebração de negociações verdadeiras e construtivas é necessária para se criar e manter uma relação de confiança entre as partes.
1329. Tanto os empregadores quanto os sindicatos devem negociar de boa-fé, envidando esforços para chegar a um acordo. A existência de relações de trabalho satisfatórias depende principalmente da atitude recíproca das partes e de sua confiança mútua.
(Ver Recompilação de 2006, parágrafo 936; 344º relatório, caso nº 2467, parágrafo 576, caso nº 2486, parágrafo 1212, caso nº 2437, parágrafo 1314; 346º relatório, caso nº 2506, parágrafo 1077; 349º relatório, caso nº 2481, parágrafo 78, caso nº 2486, parágrafo 1238; 362º relatório, caso nº 2361, parágrafo 1096; 364º relatório, caso nº 2848, parágrafo 427; e 375º relatório, caso nº 3063, parágrafo 134.)
1.330 - O princípio de que tanto empregadores como sindicatos devem negociar de boa-fé, fazendo esforços para chegarem a um acordo, supõe evitar-se todo atraso injustificado no desenvolvimento das negociações.
O acesso à Justiça é garantido mesmo em impasses, pois a via judicial complementa a proteção quando a negociação falha por má-fé ou por recusa injustificada de uma das partes à negociação.
A nível nacional e internacional, a República Federativa do Brasil deve garantir o fomento do diálogo social efetivo e remover obstáculos à negociação, indicando que a recusa patronal não pode ser um impedimento absoluto para o manejo de outros instrumentos, inclusive, judiciais, que fomentem a negociação coletiva.
A negativa imotivada de negociar por sindicatos patronais viola a essência da Convenção 98 da OIT — que exige boa-fé nas tratativas coletivas — e não pode impedir a apreciação do dissídio pela Justiça do Trabalho.
A via judicial do dissídio coletivo é garantia última de efetividade dos direitos coletivos, especialmente quando uma parte obstrui injustamente a negociação.
Da conformidade internacional: A Legitimidade Sindical à luz das Convenções nº 98 e nº 154 da OIT
A legitimidade processual do sindicato, especialmente no exercício da substituição processual, também encontra respaldo no plano internacional, no qual o Brasil é signatário de compromissos que reconhecem e promovem a atuação sindical como instrumento essencial à efetivação dos direitos dos trabalhadores.
Entre esses compromissos, destaca-se a Convenção nº 98 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que consagra o princípio da liberdade sindical e dispõe sobre a promoção da negociação coletiva como meio legítimo e eficaz de regular as condições de trabalho.
Nos termos de seu artigo 4º, a Convenção nº 98 estabelece que:
“Deverão ser tomadas, se necessário for, medidas apropriadas às condições nacionais, para fomentar e promover o pleno desenvolvimento e utilização dos meios de negociação voluntária entre empregadores ou organizações de empregadores e organizações de trabalhadores com o objetivo de regular, por meio de convenções, os termos e condições de emprego.”
Tal disposição internacional, ratificada pelo Brasil, corrobora a ideia de que sindicatos fortes, autônomos e legitimados têm papel fundamental na construção de normas coletivas e na defesa concreta dos interesses de seus representados, inclusive pela via judicial. A própria Constituição da OIT (1919) e a Declaração de Filadélfia (1944) reforçam esse compromisso com a valorização da atuação sindical como vetor de promoção da justiça social.
Nesse mesmo sentido, a Convenção nº 154 da OIT, promulgada no Brasil por meio do Decreto nº 1.256/94, tem como propósito central o estímulo à negociação coletiva e à organização democrática dos trabalhadores e empregadores. Seu artigo 5º prevê que os Estados-membros devem adotar medidas que:
“a) possibilitem a negociação coletiva a todos os empregadores e a todas as categorias de trabalhadores; b) promovam sua progressiva extensão a todas as matérias relevantes; c) estimulem a criação de normas procedimentais acordadas entre as partes; d) garantam que a inexistência ou inadequação dessas normas não impeça a negociação; e) assegurem que órgãos e procedimentos de resolução de conflitos contribuam para estimular a negociação coletiva.”
Tais diretrizes evidenciam que a negociação coletiva — e, por consequência, a atuação sindical que a representa — deve ser compreendida como mecanismo de fortalecimento democrático, com autonomia para firmar compromissos e para intervir institucionalmente na defesa dos direitos trabalhistas, inclusive por meio de ações judiciais.
A Organização Internacional do Trabalho já se manifestou, de maneira expressa, sobre a importância da liberdade de negociação sindical e sua correlação direta com a atuação autônoma dos sindicatos:
“O direito de negociar livremente com empregadores as condições de trabalho constitui elemento essencial da liberdade sindical, e os sindicatos deveriam ter o direito, mediante negociações coletivas ou por outros meios lícitos, de procurar melhorar as condições de vida e de trabalho de seus representados, enquanto as autoridades públicas devem abster-se de intervir, de forma que este direito seja restringido ou seu legítimo exercício impedido.” (Recopilación de 1985, § 583)
Além disso, é fundamental destacar que a OIT defende a negociação coletiva como processo fundado na paridade de forças entre as partes negociantes e que, por essa razão, não pode ser instrumentalizada como via para o rebaixamento do patamar mínimo civilizatório conquistado pelos trabalhadores.
Em vista disso, a legitimidade do sindicato como substituto processual não pode ser desvinculada desse contexto normativo internacional, que assegura sua plena capacidade de representação, tanto na construção de normas coletivas quanto na sua efetivação judicial, inclusive nas fases de liquidação e execução dos direitos reconhecidos em juízo.
V - ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS E A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
A Organização dos Estados Americanos (OEA) dispõe de normas aplicáveis ao Direito Sindical e de negociação coletiva, com destaque para o Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Esses instrumentos complementam o sistema normativo supralegal de proteção e fomento, a exemplo da Convenção 98 da OIT, e reforçam o direito de acesso amplo à Justiça do Trabalho. Abaixo, os principais fundamentos.
Nestes termos, o Decreto nº 592/1992 ratificou o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, com consequente promulgação, dispondo, expressamente sobre a impossibilidade de adoção de medidas que restrinjam a liberdade sindical (que dentre seus vertentes têm a negociação coletiva), verbis:
ARTIGO 22
1. Toda pessoa terá o direito de associar-se livremente a outras, inclusive o direito de constituir sindicatos e de a eles filiar-se, para a proteção de seus interesses.
[...]
3. Nenhuma das disposições do presente artigo permitirá que Estados Partes da Convenção de 1948 da Organização Internacional do Trabalho, relativa à liberdade sindical e à proteção do direito sindical, venham a adotar medidas legislativas que restrinjam – ou aplicar a lei de maneira a restringir – as garantias previstas na referida Convenção.
O Protocolo de San Salvador, ratificado pelo Decreto nº 3.321/1999:
Artigo 8 - Direitos Sindicais
1. Os Estados-Partes garantirão:
[...]
2. O exercício dos direitos enunciados acima só está sujeito às limitações e restrições previstas pela lei, que sejam próprias de uma sociedade democráticas e necessárias para salvaguardar a ordem pública e proteger a saúde ou a moral públicas, e os direitos ou liberdades dos demais. [...]
Destarte, as normas internacionais incentivam o fomento à liberdade sindical e a suas formas de realização, tais como a negociação coletiva e instrumentos capazes de otimizá-la, como o dissídio coletivo, independentemente de “comum acordo”, como forma de ampliação progressiva dos direitos humanos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerações Finais
A análise empreendida neste artigo demonstrou que a exigência do “comum acordo” para a instauração de dissídio coletivo de natureza econômica, embora prevista no art. 114, §2º, da Constituição Federal, não pode ser interpretada de forma absoluta, mecânica ou desprovida de critérios valorativos. A leitura constitucionalmente adequada desse dispositivo exige o reconhecimento de que a recusa infundada e arbitrária de sindicatos patronais em participar da negociação coletiva viola o princípio da boa-fé objetiva, bem como a função social da negociação e o direito fundamental de acesso à jurisdição.
Nesse contexto, o Poder Judiciário, em especial a Justiça do Trabalho, assume um papel fundamental na proteção das dinâmicas democráticas das relações coletivas de trabalho. Ao reconhecer a possibilidade de comum acordo tácito, o Judiciário não apenas assegura a efetividade dos direitos coletivos dos trabalhadores, como também coíbe práticas antissindicais e estratégias de obstrução negocial.
A função jurisdicional, nesse caso, não se limita à aplicação literal de dispositivos constitucionais, mas busca sua interpretação à luz dos princípios fundamentais que estruturam o Estado Democrático de Direito, como a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho, a boa-fé objetiva, a cooperação entre as partes e a função social dos instrumentos coletivos.
A tramitação do IRDR nº 1000907-30.2023.5.00.0000 no Tribunal Superior do Trabalho apenas reforça a atualidade e a relevância da discussão abordada neste estudo, que permanece necessária e pertinente independentemente do desfecho do incidente. O presente trabalho propõe uma leitura constitucional e sistemática do ordenamento jurídico, com base nos compromissos nacionais e internacionais assumidos pelo Brasil, em defesa da efetividade da negociação coletiva e da tutela jurisdicional dos direitos sociais.
REFERÊNCIAS
GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de Direito Processual do Trabalho. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Coletiva – Instrumento de Efetividade da Jurisdição. 3. ed. São Paulo: RT, 2013.
NETO, Francisco Ferreira Jorge Neto; CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. Dissídio Coletivo do Trabalho e Ação de Cumprimento (In: Enciclopédia Jurídica da PUCSP, tomo VI, 2020. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/388/edicao-1/dissidio-coletivo-de-trabalho-e-acao-de-cumprimento.
NASSER, Salem Hikmat. Direitos Coletivos em Juízo. 3. ed. São Paulo: RT, 2008.
NICODADELI, Sandro Lunardi et all. Liberdade sindical : recompilação de decisões do Comitê de Liberdade Sindical da OIT /Organização Internacional do Trabalho ; supervisão Sandro Lunard Nicoladeli, Ronaldo Lima dos Santos, Jefferson Luiz Maciel Rodrigues ; tradução Raquel Sizanoski ; revisão Ana Paula Mira. – Brasília: Ministério Público do Trabalho, 2023.
Nenhum comentário:
Postar um comentário