Voltara Antonino Tinoco da
reunião habitual; entretanto, a palavra amorosa e sábia dos amigos espirituais
não lhe aliviara o coração atormentado, como sucedia de outras vezes.
Generosas entidades lhe falaram
ao íntimo, da beleza da consciência pura, exalçando a felicidade no dever
cumprido, e, contudo, parecia agora inabilitado à compreensão.
Aquele vulto de mulher
ocupava-lhe a mente, como se fosse uma obcecação doentia.
Não lhe dera Deus o lar honesto,
o afeto caricioso da companheira e dos filhinhos? Que lhe faltava ao coração?
Agora, sentia-se quase sem forças.
Conhecera-a numa festa elegante,
íntima.
Recordava nitidamente o instante
em que se cumprimentaram pela primeira vez.
Não tencionava dançar, mas alguém
insistira, apresentando-lhe Gildete.
Entendeu-lhe de pronto o
temperamento original.
Conversaram envolvidos em
simpatia franca, embalados em sons musicais, dentro da noite linda, sob árvores
tranquilas e balouçadas de vento descuidoso.
A história de Gildete comovera-o
e os dias enlaçaram ambos cada vez mais, em repetidos encontros.
Não valeram explicações,
advertências e conselhos de sua parte.
Abandonara-se-lhe a jovem
teimosamente, enredando-o em maravilhosa teia de seduções.
Contara-lhe complicado romance de
sua vida, que Antonino aceitou com a boa-fé que lhe caracterizava o espírito
fraternal. Gildete, no entanto, vinha de mais longe.
Espírito envenenado de aventuras
inconfessáveis, presumia em Tinoco outra presa fácil.
A princípio, encontravam-se duas
vezes por semana, como bons amigos plenamente identificados entre si; mas a
gentileza excessiva embebedara-o, devagarinho, e não se sentiu surpreendido
quando entraram a falar de atração, desejos, amor.
A partir dessa noite, tornara-se
mais assíduo e interessado.
De quando em quando, advertia-o a
consciência nos recessos do ser.
Seria crível que, integrado no
conhecimento de sublimes revelações espirituais, se entregasse inerme a
condenáveis aventuras, quando assumira sagrados compromissos de família? Por
vezes, acentuava-se-lhe o impulso de resistência, beijava ardentemente os
filhinhos, alegrava a esposa, renovando delicadezas cariciosas; subitamente,
porém, lembrava a outra e, qual animalzinho magnetizado, inventava pretextos
para ausentar-se.
Gildete obcecara-o.
Cada noite, lia-lhe novas páginas
de ternura, que afirmava escritas somente para ele, na soledade do coração.
Dirigia-lhe olhares súplices,
lacrimosos, tímidos, de criança ingênua, e que Tinoco interpretava como
carícias de primeiro e único amor.
Em vão tentava referir-se à
dedicação platônica que lhe competia, aos sagrados compromissos que o prendiam.
A sereia destacava sempre novas
possibilidades e descobria diferentes caminhos para satisfação dos criminosos
desejos. Antonino escutava-lhe os apelos, sob emoções fortes, devorando
cigarros avidamente.
Em determinadas ocasiões, cedera
quase.
Mas no instante preciso, quando a
perigosa criatura se julgava triunfante na batalha oculta, algo lhe ocorria ao
espírito bem-intencionado, impedindo a total rendição.
Eram lembranças vagas dos filhos
queridos, recordações de gestos amorosos da companheira; outras vezes,
parecia-lhe escutar de novo as preleções evangélicas das reuniões espiritistas
que costumava frequentar periodicamente.
Gildete exasperava-se,
sentindo-se espicaçada pela vaidade ferida.
Mais de um ano decorrera, no qual
Antonino perdera energias e tranqüilidade. Emagrecera.
Nunca mais se lhe observara o
olhar sereno de outros tempos.
Ele próprio não sabia explicar a
causa de sua resistência moral, ante a situação complicada e indefinida.
É que o abnegado Ornar, velho
companheiro de existências transcorridas, seguia-o espiritualmente de há muitos
séculos e permanecia vigilante.
À tirania da mulher inconsciente
sobrepunha-se uma influência superior.
Se Gildete emitia conceitos
tendentes a desintegrar o caráter de Antonino, oferecia-lhe Ornar pensamentos
nobres.
A imaginação do rapaz
convertera-se em campo raso de luta.
Naquela noite, todavia, Tinoco
revelava-se mais fraco.
Era-lhe quase impossível resistir
por mais tempo.
Debalde aproximou-se o benfeitor
trazendo-lhe socorro.
Cérebro escaldando, Antonino
refletia: não via tantos amigos, aparentemente respeitáveis, sustentando episódios
afetivos longe do lar?
Possuindo recursos financeiros
para atender às suas obrigações, como deixar Gildete em abandono?
Afinal, não seria generosidade
amparar uma criatura sem arrimo e sem família?
O nosso Antonino aproximava-se da
capitulação integral.
Preocupado, nervoso, esperou o
dia imediato e, à noite, procurou ansiosamente a perigosa diva.
Depois de trivialidades usuais,
penetraram o terreno das considerações afetivas. Gildete parecia-lhe mais
sedutora que nunca.
– O dever é cruz bem pesada –
suspirou ele com amargura.
– Mas não se trata de fugir ao
dever – tentou ela esclarecer sutilmente –, longe de mim a idéia de comprometer
teu nome, arruinar tua paz doméstica. Não achas, porém, que também eu tenho
direito à vida? Sou o faminto atormentado, junto ao celeiro rico de afetos.
Teus escrúpulos são naturais e respeitáveis e sou a primeira a louvar a nobreza
do teu proceder; entretanto, não podes desconhecer minha condição de mendigo
batendo-te à porta. Há quanto tempo suplico migalhas de amor que te sobram no
lar? Encontrando-te, supus-me acompanharam a vida e os pensamentos. Nossa
primeira noite de baile pareceu-me a entrada em paraísos maravilhosos. Guardei
a impressão de que tua voz chegava de longe, do pais delicioso do sonho…
Depois, Antonino, informei-me da tua vida. Estavas preso a outra, eras pai de
filhinhos que não são meus. A realidade encheu-me de sombras e, não obstante a
sorte adversa, nunca desanimei. Amo-te com ardor sempre novo, esperando-te
ansiosa.
E porque o rapaz lhe guardava as
mãos entre as dele, a revelar carinho, Gildete tinha os olhos úmidos, brilhando
à luz cariciosa e discreta, e continuava:
– Não exijo que sacrifiques teus
deveres, não desejo te transformes em marido execrado, mas suplico a migalha de
afeto, algo que alivie os pesares imensos desta minha solidão angustiosa…
A essa altura, desfez-se em
pranto convulsivo, que Tinoco procurava estancar carinhosamente. Abraçando-a,
comovido, renovou protestos amorosos e tudo prometeu, decidido a todas as
conseqüências :
– Não chores assim; deves saber
que vives comigo em toda a parte, no coração e no pensamento. Ouve, Gildete!
Iremos amanhã para Petrópolis, organizaremos nossa vida. Não posso desprezar a
família, mas passarei a manter o lar e o ninho, a mãe de meus filhos e a companheira ideal.
A pérfida criatura exibia gestos
de felicidade imensa.
Depois de venturosos votos muitas
vezes renovados, separaram-se com a promessa de união definitiva, para o dia
seguinte.
Nessa noite, todavia, enquanto
Tinoco tentava a custo conciliar o sono, absorvido em projetos de voluptuosa
exaltação, Omar, aflito, trazia um nobre amigo da Espiritualidade, mais
experiente que ele próprio, a fim de opinar na difícil conjuntura.
Anacleto, o venerando guia,
examinou Antonino, atentamente meneou a cabeça e esclareceu :
– Toda a zona mental está
invadida de larvas venenosas. As zonas de receptividade permanecem fechadas à
influenciação superior. Teu protegido está absolutamente hipnotizado pela
mulher que lhe armou o laço de mel.
Abismando-se Ornar em amargurosa
tristeza, Anacleto explicou :
– Só há um meio de salvá-lo.
– Qual? – perguntou o generoso
amigo.
– A enfermidade grave e longa,
algo que, abalando-o nos recessos da personalidade, lhe esgote o terrível
conteúdo psíquico.
Trocaram idéias durante alguns
minutos e, voltando Anacleto à esfera superior, podia-se ver Omar em agitação
intensa.
Alta madrugada, Tinoco despertou
de breve sono, experimentando dores agudas.
Levantou-se, mas as cólicas e
vômitos incoercíveis obrigaram-no a deitar-se novamente.
A esposa abnegada, depois de
mobilizar os recursos possíveis, telefonou inquieta ao médico da casa.
O facultativo atendeu
prontamente.
Após minucioso exame, prescreveu
banhos quentes e injeções intravenosas de água salgada. Ao despedir-se, falou
ao Sr Tinoco em caráter confidencial:
– O caso é muito grave. Tenho a
perfeita impressão da cólera morbus. A fraqueza, a algidez, os vômitos e
contrações, são sintomáticos. Voltarei mais tarde para colher elementos
necessários ao exame bacteriológico.
Mal clareava o dia e Antonino já
apresentava lividez cadavérica.
O dia correu entre inquietudes
angustiosas.
À noite apareceu Gildete,
acompanhada de amigos, para visita aparentemente sem significação.
Acercando-se do leito, não dissimulou
a surpresa profunda ao ver Antonino palidíssimo, ofegante, aguilhoado de
cólicas dolorosas.
Não obstante as pesquisas de
laboratório e renovação de tratamento, Tinoco piorava dia a dia.
Acabrunhado e lacrimoso, na fase
culminante do sofrimento, suplicou a presença da mãezinha querida, que
desencarnara dois anos antes.
Evocado com veemência, o Espírito
materno não se fez demorado.
Reconhecendo-lhe os padecimentos
rudes, a velhinha venerável abraçava-o, rezando.
Nesse instante, aproximou-se Omar
e lhe falou entre enérgico e compassivo :
– Minha irmã, não implore a Deus
providências favoráveis à saúde de seu filho.
– Oh! generoso amigo – objetou
emocionada –, acaso não sou mãe afetuosa? Como poderia ver meu filho
atormentado, sem rogar a Deus lhe devolva o equilíbrio indispensável à vida?
– Sim, você foi mãe dele por
trinta e cinco anos, mas eu estou em serviço ativo pela saúde espiritual de
Antonino há mais de quinze séculos. A moléstia não o abandonará, até que se
anulem os perigos. Enquanto há condensação de vapores, a nuvem não desaparece
do céu.
De fato, somente depois de onze
meses voltava Tinoco do consultório, fisionomia radiante, ao lado da esposa
carinhosa. O médico afirmara, abraçando-o:
– Você deve orgulhar-se do
organismo que possui. A princípio, alarmei-me com os sintomas da cólera;
todavia, embora lhe descobrisse a forma benigna, eram tantas as complicações
que cheguei a duvidar da sua resistência. Na verdade, a Natureza o dotou de
reservas vigorosas.
Tinoco, restabelecido, não sabia
como agradecer a Deus a bênção da harmonia orgânica, e quando, mais tarde,
perguntou por Gildete, soube que a perigosa mulher residia em Madureira, ligada
a outro homem.
Só então compreendeu que, se o
amor é capaz de todos os sacrifícios, o desejo costuma extinguir-se ao primeiro
sinal de falência orgânica, ou de mocidade evanescente.
Pelo Espírito Humberto de
Campos - Escrito em 1942
Do livro: Reportagens de Além
Túmulo
Médium: Francisco Cândido Xavier
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