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sexta-feira, 10 de junho de 2022

ANÁLISE DA JUSTIÇA DAS AÇÕES AFIRMATIVAS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR SOB A ÓTICA DO IGUALITARISMO LIBERAL DE RONALD DWORKIN


Demítrius Bruno Farias Valente¹


  1. A noção de justiça

As ações afirmativas para acesso ao ensino superior serão, neste primeiro momento, analisadas levando-se em consideração critérios de justiça. Tal metodologia claramente recebe influência de John Rawls, filósofo de Harvard, autor da proposta teórica da Justiça como Equidade. Ao destinar posição de destaque à Justiça como primeira virtude das instituições sociais, Rawls estabelece uma prioridade do justo na análise da distribuição de qualquer bem primário – nesse caso, a educação. 

Sua afirmação de que “(...) uma teoria deve ser rejeitada ou revisitada se não é verdadeira; da mesma forma as leis e instituições, por mais eficientes e bem organizadas que sejam, devem ser reformadas ou abolidas se são injustas”², implica metodologicamente na necessidade da avaliação de qualquer política primeiramente à partir de critérios de justiça. Sob esse prisma, qualquer análise de constitucionalidade ou efetividade seria estéril diante da verificação da injustiça da política adotada. 

Mas a Justiça não é somente a instância prioritária de avaliação de uma política, como também é provavelmente uma das mais difíceis. O próprio significado do termo é ressignificado a depender do referencial teórico adotado. Por exemplo, para um libertário, justo é aquilo que respeita as opções individuais; já um Kantiano questionaria a própria noção de liberdade que serve de base à teoria libertária. Assim, conforme a concepção adotada, a justiça pode, por exemplo, ser uma concepção deontológica, determinada aprioristicamente através da racionalidade prática ou mesmo de um procedimento equitativo ou a maximização do prazer em detrimento da dor em um situado grupo de indivíduos. 

Esse é um dilema inescapável. Autores antigos como Aristóteles (384-322 A.C); modernos como Immanuel Kant (1724-1804), Jeremy Bentham (1748-1832) e Stuart Mill (1806-1873); e contemporâneos como John Rawls (1921-2002), Ronald Dworkin (1931-2013), Robert Nozick (1938-2002), Michael Walzer (1935-atual) e Michael Sandel (1953-atual), dedicaram anos a reflexões acerca do tema, sem, entretanto, escapar de críticas contundentes as suas teorias.

Diante da imensidão de propostas teóricas tão contrastantes, questiona-se: Como trabalhar com análises na instância da justiça? A resposta mais prudente parece ser que tal análise deve ser feita de forma dialogal, através de mais de um prisma. Afinal, não se pode atribuir o monopólio da noção de justiça a utilitaristas, igualitaristas ou libertários.

Dessa forma, o presente trabalho não poderia ter a pretensão de esgotar um debate acerca da justiça. Aqui se fará uma introdução de ao debate sob a ótima do igualitarismo liberal de Ronald Dworkin.


  1. O Igualitarismo Liberal de Ronald Dworkin

Ronald Dworkin, proeminente jurista e autor da obra “Take Right Seriously“, travou intensos debates com John Rawls, realizando críticas contundentes a sua teoria e se destacando como um grande expoente do igualitarismo.

Durante o século XX, prevaleceu uma certa relação conflituosa entre igualdade e liberdade. Nas palavras de Darlei Dall’Agnol³: “parece que se uma determinada política pública dá ênfase à liberdade individual, há um crescimento significativo da desigualdade social”. Como exemplo, o autor traz a política neoliberal na América Latina nos anos 90. Por outro lado, “a tentativa de implantação de regimes socialistas, via ditadura do proletariado, é uma clara evidência deste aparente antagonismo entre liberdade e igualdade”.

Já na teoria de Dworkin, há um intenso esforço no sentido de demostrar que liberdade e igualdade não são necessariamente contrapostas, mas possivelmente complementares. Apesar de trabalhar na tradição liberal, sua concepção de liberalismo é própria e tem a igualdade como fundamento. Daí a razão do termo “Igualitarismo Liberal!4

Ao contrário de Rawls, Dworkin não acreditava que o princípio da igualdade fosse decorrência de uma posição original, sendo, ao contrário, seu próprio pressuposto. Para ele: “o direito ao igual respeito não é um produto do contrato, mas a condição de admissão na posição original”5. Tal crítica parece válida, uma vez que a igualdade entre os indivíduos em posição original é requisito fundamental para a deliberação acerca dos princípios de distribuição dos bens fundamentais de uma sociedade. 

Conforme demonstrado no tópico 1.4.3, Rawls acredita que na posição original haveria um consenso quanto a dois princípios6:

Primeiro: cada pessoa deve ter igual direito ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de igualdade para as outras.

Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos.


Conforme visto, Rawls também defende uma prevalência do primeiro princípio sobre o segundo, ou seja, pela precedência da liberdade sobre a igualdade. Isso significa que não se pode assegurar a superação de uma desigualdade social ou econômica em detrimento de uma ofensa à liberdade. 

Dworkin, ao contrário, pensa que mesmo sob o véu da ignorância as pessoas não necessariamente optariam pelos princípios acima elencados. Algumas pessoas poderiam simplesmente querer arriscar, assumindo princípios de justiça não igualitários, na tentativa de se colocarem em posição de vantagem sobre os demais7.


  1. Direitos como Trunfos

O pensamento de Dworkin também é marcado por uma profunda crítica ao utilitarismo, notadamente a sua expressão através da instituição do welfare state. Segundo Darlei Dall’Agnol8, “Tradicionalmente, os utilitaristas opuseram-se à noção de direitos humanos, e Bentham chegou mesmo a considerá-los algo fictício”. Explica-se: o princípio que funda o utilitarismo é o de que o bem-estar de qualquer indivíduo nunca pode prevalecer sobre o bem comum.

Nas escolas utilitaristas, a defesa do bem-estar costuma ser feita através da noção de que este é um bem em si. Entretanto, Dworkin considera absurdo a fundamentação de políticas com base no simples bem-estar. Como alternativa a essa concepção o autor defende a legitimação de políticas pela igualdade, vista como um modo de tratar os cidadãos mostrando-lhes a mesma consideração e o igual respeito9.

Como iguais, todos os indivíduos têm direitos que não podem ser afastados em nome do bem-estar de outras pessoas. A defesa da igualdade, presente fortemente em sua obra, é a base de sua noção de direitos individuais, tidos como trunfos perante a atuação estatal. É necessário salientar, entretanto, que para o autor o conflito entre direitos individuais e bem-estar geral é tão somente aparente, uma vez que a justificação do bem-estar geral deve ser feita a partir da noção de igualdade10.

O autor justifica os direitos a partir da igualdade, sendo a democracia um modo igualitário de decidir. Em outras palavras: os direitos políticos fundam-se na igualdade materializada nas decisões democráticas. De fato, a igualdade é fundamental à democracia. Tanto que Robert Darh11 afirma que na antiguidade surgiam governos populares sempre que dentro de uma determinada sociedade existia uma espécie de “lógica da Igualdade”.


  1. As ações afirmativas para acesso ao ensino superior segundo Ronald Dworkin: Os casos Sweatt X Universidade do Texas e DeFunis X Universidade de Washington

No capítulo 9 de “Take Right Seriously”, Ronald Dworkin12, desenvolve argumentos favoráveis à discriminação compensatória para acesso de negros à universidade, iniciando sua argumentação através do estudo dos casos “Sweatt X Universidade do Texas” e “DeFunis X Universidade de Washington”.

Em 1945, um homem negro chamado Sweatt tentou ingressar na Universidade do Texas, mas fora impedido em virtude de uma lei estadual que determinava que somente estudantes brancos poderiam frequentar a universidade. A Suprema Corte Norte-Americana então declarou que tal lei violava os direitos de Sweatt, uma vez que feria a Décima Quarta Emenda, segundo a qual é defeso a qualquer Estado negar a proteção igual a qualquer homem perante a lei.

Em 1971, um judeu chamado DeFunis pleiteou uma vaga na Universidade de Direito de Washington, tendo, entretanto, sido rejeitado. Suas notas seriam altas o suficiente para conseguir a vaga desde que este fosse membro de uma das minorias étnicas beneficiadas pela política da Universidade, que lhes estabelecia critérios menos rigorosos. Inconformado, DeFunis pleiteou perante a Suprema Corte a declaração de que essa prática violava os direitos que lhe eram assegurados pela Décima Quarta Emenda.

Enquanto aqueles candidatos que não faziam parte de grupo minoritário estavam sujeitos a uma nota de corte bem alta, bem como entre aqueles que atingissem tal nota ainda existiam avaliações cada vez mais criteriosas para definir os aptos, entre os grupos minoritários, a maioria dos alunos sequer atingia a referida nota de corte. A universidade, inclusive, admitiu que qualquer aluno pertencente a um grupo minoritário com a nota de DeFunis seria aceito. 

No final, o caso não fora decidido pela Suprema Corte, que entendeu que sua decisão não teria nenhuma importância prática, posto que um tribunal inferior decidiu em favor de DeFunis e a Universidade de Washington decidiu que independentemente da decisão final ele iria se formar. Não obstante, o Juiz Douglas discordou dessa neutralidade, defendendo posição segundo a qual o pleito de DeFunis deveria ter sido acolhido com fundamento em seu mérito. 

Não se pode, entretanto, levantar a pretensão segundo a qual algum indivíduo tenha direito fundamental a que lhe seja prestada educação jurídica com algum nível de qualidade. Também nada impede que a inteligência não seja o único critério para admissão em uma faculdade, ainda que seja considerada útil para a sociedade que os profissionais advindos das universidades sejam inteligentes. Não obstante, DeFunis entende que o fator raça não pode ser utilizado como critério de classificação, posto um dever geral de igualdade estabelecido pela décima quarta emenda. 

Para Dworkin, não é possível avaliar através dos argumentos de ambas as partes ou mesmo das decisões anteriores da Suprema Corte se a emenda tinha o objetivo de proibir qualquer classificação racial, ainda que esta possa ter efeitos capazes de combater a desigualdade fática entre negros e brancos. 

Dworkin distingue o tratamento igual (equal treatment), que é o direito a uma igual distribuição de uma oportunidade ou encargo (o direito ao voto com igual valor, por exemplo), do tratamento como igual (treatment as equal), que é o direito de ser tratado com o mesmo respeito e consideração das outras pessoas. O autor exemplifica: Se um pai tem dois filhos e um deles está morrendo de uma doença que só está causando desconforto ao outro, este não demonstrará igual atenção se jogar uma moeda para decidir para qual dos dois dará a última dose do remédio. O exemplo tem o objetivo de demonstrar que o direito ao tratamento como igual é fundamental, mas o direito ao igual tratamento é derivado, de tal forma que em nem todas as circunstâncias o direito ao tratamento como igual terá como decorrência o direito ao igual tratamento. 

O autor conclui então que DeFunis não tem direito ao igual tratamento na postulação de vaga para uma universidade de direito somente porque essas vagas são oferecidas aos outros. Os indivíduos têm tal direito na educação básica, não obstante a educação jurídica não possui tanta fundamentalidade ao ponto de que todos devam ter direito igual a ela.

Suponha-se que um determinado candidato alegasse que seu direito a ser tratado como igual é violado por testes que beneficiam os mais inteligentes em detrimento dos menos inteligentes. A resposta da faculdade poderia perfeitamente ser no sentido de que qualquer critério utilizado beneficiaria um certo grupo em detrimento de outro, sendo, contudo, necessário avaliar se o ganho geral da sociedade, advindo daquele critério, ultrapassa a média global da perda ou se não inexistem outros critérios com semelhante ganho e que não incorram em perdas do mesmo nível. Dessa forma, o direito do indivíduo de ser tratado como igual significa que sua perda deve ser considerada. Não obstante, não implica que esta deva ser afastada em detrimento de um maior ganho da comunidade como um todo. Dessa forma, o candidato não pode alegar que seu direito está sendo violado simplesmente por enfrentar uma desvantagem que alguns não enfrentam. 

O mesmo argumento poderia ser utilizado com DeFunis, posto que é razoável supor que uma política que facilite o acesso das minorias tenha um efeito positivo sobre a sociedade que supere as perdas sofridas pelo candidato, tendo em vista, por exemplo, mais advogados negros pode significar maior engajamento uma melhor tutela dos direitos de negros.

Imagine que o mesmo argumento fosse utilizado de outra forma. Suponha que a comissão de avaliação da Universidade do Texas entendesse que a economia texana, naquele momento, exigia mais advogados brancos do que era possível formar, mas não tinha espaço para advogados negros, uma vez que as grandes firmas de advocacia precisavam de advogados que atendessem ao rápido crescimento dos negócios, mas não podia contratar negros já que sofreriam grande perda de clientes. Suponha ainda que as doações de ex-alunos diminuíssem caso fossem aceitos negros. A comissão podia deplorar esse fato, mas ainda assim aceitar que o prejuízo causado seria maior que os ganhos. 

Dworkin se refere a um episódio no qual Lowell, reitor de Harvard, defendeu uma quota que limitasse o acesso de judeus ao seu percentual na população, quota que, de fato, seria superada uma vez que a inteligência fosse o único critério de aprovação. Nesse caso, Harvard deixaria de produzir homens mais harmoniosamente educados, e não exclusivamente intelectualizados, e, portanto, com maior capacidade de liderança. Os Judeus, àquela época, sem dúvidas tinham menor probabilidade de ocupar cargos importantes no governo ou em grandes empresas. Como o interesse de Harvard era o bem-estar da nação, parecia natural procurarem evitar uma sala repleta de judeus.

Poder-se-ia responder que os negros foram escravizados e discriminados, e que, por isso, qualquer política que os exclua poderia ser considerada insultante. Não obstante, não é possível determinar que uma política seja negativa tão somente pelo sentimento que causa nas pessoas, já que no exemplo do indivíduo que se sente prejudicado por ter sido utilizado o critério da inteligência, também pode ter se sentido insultado. 

Todavia, todos esses argumentos que trazem a possibilidade de colocar determinados indivíduos em situação de desvantagem em detrimento de um bem maior, encaram grandes dificuldades práticas e teóricas. 

Em primeiro lugar, existem dois sentidos segundo os quais pode-se afirmar que a comunidade como um todo ganha ainda que alguns de seus membros não estejam bem. A sociedade pode estar melhor em um sentido utilitarista, ou seja, a média do bem-estar da comunidade aumentou apesar do bem-estar de um indivíduo específico ter diminuído. Ou pode estar melhor em um sentido ideal, ou seja, porque é mais justo de alguma forma mais próxima do ideal que o bem-estar da sociedade tenha aumentado. A Universidade de Washington poderia ter usado qualquer um dos dois argumentos. Poderia ter usado um argumento utilitarista, alegando que um número maior de advogados negros reduziria as tensões sociais, melhorando o bem-estar de quase toda a sociedade. Por outro lado, poderia ter argumentado que, seja qual for o efeito sobre o bem-estar da sociedade, tal prática tornará a comunidade mais igualitária, e, portanto, mais justa. Trata-se de um argumento ideal. 

A Universidade do Texas pode se valer de todos os argumentos utilitaristas aqui descritos, mas não pode se valer do argumento ideal, tendo em vista que a sua prática tende a favorecer a segregação, atentando contra a igualdade. O argumento utilitarista também parte de premissas impraticáveis. Como, por exemplo, trabalhar com noções de bem-estar médio ou coletivo ou como somar as perdas e ganhos de bem-estar para justificar a alegação de que os bens ganham as perdas?

Por outro lado, ainda que se atribua a utilidade não ao bem-estar mas a preferência, há graves problemas daí decorrentes. Em primeiro lugar, um dos grandes atrativos do utilitarismo é a possibilidade de igualdade dele decorrente, uma vez que a preferência de cada pessoa é avaliada com o mesmo peso. Não obstante, as escolhas dos indivíduos podem ser decorrentes de uma preferência pessoal pela certa fruição de bens ou oportunidades ou por preferências externas, pela atribuição de bens e oportunidades a outros, ou por ambas as preferências. Um candidato branco a uma Faculdade de Direito pode, por exemplo, ter uma preferência pessoal pelas consequências da segregação por isso aumentar as chances de seu próprio sucesso ou por desprezar negros e por isso desaprovar que as duas raças se misturem. 

A distinção é fundamental, uma vez que se a determinação da utilidade de uma prática depender não somente das preferências pessoais mas também das preferências externas, o caráter igualitário do argumento ficará corrompido haja vista que a possibilidade das preferências de qualquer um venham a ser bem sucedidas dependerá do respeito ou da afeição dos outros ao seu estilo de vida. Destrói-se assim o caráter igualitário, uma vez que não será contabilizada tão somente a preferência pessoal, mas também a preferência externa, representando uma grande ameaça as minorias. Os negros, sofrerão, então, pela influência externa do racismo, pelo fato de serem vistos como menos dignos pelos outros. Tal conclusão afasta qualquer possibilidade de decisão tomada com base no racismo. 

Mesmo as preferências externas altruístas ou moralistas têm o mesmo efeito. Por exemplo, caso caiba a uma comunidade a escolha entre a construção de uma piscina ou de um teatro, caso as pessoas que não nadem mas que gostem do esporte participem da escolha, os nadadores serão beneficiados de forma dupla: não somente pela própria preferência, mas também pela preferência daqueles que retiram prazer de seu sucesso. Da mesma forma aconteceria se aqueles que entendem que a prática do teatro atenta contra a moral tivessem poder de escolha. Os exemplos tratam, entretanto, de uma simplificação, uma vez que quase sempre as preferências externas não são independentes das preferências pessoais, mas ao contrário, são nelas enxertadas e as reforçam. 

No caso da Universidade do Texas, as preferências que poderiam dar sustentação ao argumento segregacionista são claramente externas e expressas através do racismo. Dessa forma, a alegação de que a segregação aumenta o bem-estar da comunidade em um sentido utilitarista é incompatível com o direito de Sweatt de ser tratado como igual. 

Na verdade, os argumentos utilitaristas que justificam uma desvantagem a membros de uma raça contra a qual existe preconceito são sempre não equânimes (unfair), ao menos que se possa demonstrar que essa desvantagem teria sido justificada na ausência de preconceito. Quando o preconceito for muito difundido, como é o caso dos negros, tal demonstração é impossível.

Dessa forma, conclui-se que a diferenciação feita pela Universidade de Washington pode ser fundamentada tanto por critérios ideais (por favorecer a igualdade), quanto por critérios utilitários de preferências pessoais (por determinados indivíduos entenderem-se favorecidos pela política), mas também por critérios utilitários de preferência externa (como no caso de se entender que haverá uma melhor defesa da comunidade negra uma vez que existam mais advogados negros). Já a diferenciação feita pela Universidade do Texas só pode ser embasada em critérios de utilidade baseada nas preferências externas, de tal forma a refletir o racismo.

  1. Conclusões

O presente artigo naturalmente não teve a pretensão de esgotar qualquer discussão acerca da justiça das ações afirmativas, missão que demandaria um esforço bem mais verticalizado. Aqui, optou-se pela apresentação de diversas teorias com a finalidade simples de estabelecimento de critérios de avaliação da política pública a ser abordada em estudos posteriores.

Em suma, o presente artigo teve a pretensão de enfrentar a seguinte problemática: “em que circunstâncias uma ação afirmativa de acesso ao ensino superior pode ser considerada justa?” A resposta para tal pergunta vai depender do referencial teórico adotado, entretanto ressalta-se a necessidade de seu enfrentamento antes do avanço para quaisquer outros âmbitos de análise.

Sob uma ótica utilitarista, por exemplo, seria inviável falar em justiça da política pública de cotas para universidades públicas, uma vez em que se verificasse que os danos por ela causados superaram os ganhos. Tais argumentos só podem ser melhor analisados em concreto, não obstante, claramente tal nível de intervenção social só pode ser justificado por resultados bastante efetivos. 

Os utilitaristas trazem ensinamentos valiosos, uma vez que não se pode negar a necessidade de ótimo aproveitamento dos bens de uma determinada sociedade. Assim como não pode haver justiça onde há desperdício, as decisões tendem a ser mais justas quanto mais maximizarem os ganhos em detrimento das perdas. Dessa forma, um olhar utilitarista pode contribuir sobremaneira para o refinamento de uma política.

Com isso não se quer dizer que a análise de eficiência está restrita a lógica utilitarista. O princípio da eficiência de Rawls determina que a organização de direitos e deveres na estrutura básica só é eficiente se não for possível mudar as regras ou redefinir o esquema de direitos e deveres de algum indivíduo sem que isso importe em prejuízo a pelo menos um outro indivíduo13. Tal noção possibilita a análise de eficiência de uma política pública com a grande vantagem de não permitir que esta seja efetivada em prejuízo a qualquer indivíduo.

 Dessa forma, a teoria de Rawls se destaca pela proteção dos indivíduos em detrimento de uma simples lógica de eficiência. Sob tal ótica, deve-se questionar se a política pública em análise favorece a igualdade entre os indivíduos através da redistribuição dos bens fundamentais da sociedade em que está inserida, bem como se essa redistribuição está sendo feita de forma a garantir o maior ganho sem que esse importe em prejuízo a nenhum indivíduo.

Apresentou-se a argumentação igualitarista de Dworkin, justificando as ações afirmativas de acesso ao ensino superior com base no argumento ideal do favorecimento à igualdade, em detrimento da lógica utilitarista, que leva em consideração o saldo de satisfação das ações. 


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  1. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. E-mail: bruno_fvalente@hotmail.com

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  3.  DALL'AGNOL, Darlei. O igualitarismo liberal de Dworkin. Kriterion [online]. 2005, vol.46, n.111, pp.55-69. P. 56.

  4.  Ibidem. pp.55-69. P. 56.

  5.  DWORKIN, R. The Original Position. [1975]. In: DANIELS, N. Reading Rawls. Critical studies in Rawls’ A theory of justice. Stanford: University Press, 1989. p.16-53. P. 51.

  6.  RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000. P. 64.

  7.  DWORKIN, R. The Original Position. [1975]. In: DANIELS, N. Reading Rawls. Critical studies in Rawls’ A theory of justice. Stanford: University Press, 1989. p.16-53. P. 57.

  8.  DALL'AGNOL, Darlei. O igualitarismo liberal de Dworkin. Kriterion [online]. 2005, vol.46, n.111, pp.55-69. P. 60.

  9.  DWORKIN. Ronald. Levando os Direitos a Sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2000. P. 183.

  10.  DALL'AGNOL, Darlei. O igualitarismo liberal de Dworkin. Kriterion [online]. 2005, vol.46, n.111, pp.55-69. P. 60.

  11.  DAHAL. Robert A. Sobre a Democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília: UNB, 2001. P. 20.

  12.  DWORKIN. Ronald. Levando os Direitos a Sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2000. P. 343-369.

  13.  RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000. P. 74.

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