Durante a
redação da Constituinte norte-americana de 1787, James Madison, um de seus
principais elaboradores e, posteriormente, presidente dos Estados Unidos,
defendia a democracia junto a seus pares porque ela era a melhor maneira de
defender os ricos e suas propriedades da pressão redistributiva dos pobres.
O
pensamento liberal que inspirava James Madison considerava que os únicos que
podiam assumir funções políticas - no Parlamento, no Executivo e no Judiciário
- eram os proprietários. Era a afirmação da burguesia no poder. Uma nova classe
criava então seu pensamento político e um sistema democrático que buscava
garantir sua hegemonia política e sua permanência no poder.
Passaram-se
mais de duzentos anos e o sistema político democrático liberal mudou pouco. Mas
as lutas sociais do século XX acabaram por forçar a ampliação do conceito de
cidadania, levando muitos países a adotar o sufrágio universal, o voto direto e
secreto por parte dos cidadãos. E nesse novo cenário surgiram novos atores
sociais e políticos, os trabalhadores se organizaram e entraram em cena,
promoveram revoluções em muitas partes do mundo. O bloco soviético e a doutrina
socialista tornaram-se uma constante ameaça para a burguesia no poder. Sob a
pressão dos movimentos sociais, depois da Segunda Guerra Mundial, a Europa
construiu o Estado de bem-estar social, reconhecendo e garantindo direitos
sociais, oferecendo políticas públicas universais de qualidade que asseguravam
proteção social e boa qualidade de vida para todos.
Para
enfrentar essa "perda de controle" do processo democrático por parte
das elites econômicas, na segunda metade do século XX o neoliberalismo passou a
propor a separação entre economia e política.
O processo
econômico, liderado e conduzido por uma coalizão dos grandes grupos financeiros
e industriais, correu com autonomia e em paralelo ao mundo da política, este
último encarregado de construir a legitimidade dos governantes e administrar as
pressões sociais, garantindo o status quo, isto é, a continuidade da democracia
liberal e dos processos de eleição que asseguravam a manutenção das elites no
poder.
Sob a
hegemonia do pensamento neoliberal, a sociedade se organizou não para atender
aos interesses das maiorias, mas para satisfazer as demandas dos grupos
financeiros e industriais no poder. Para privilegiar os interesses dessa elite
econômica, estabeleceu-se uma sabotagem sistemática dos interesses públicos, os
interesses da coletividade. O desvio dos recursos públicos para favorecer os
grandes negócios, mediante processos de suborno e corrupção que chegam até os
dias de hoje, foi o modo dominante para assegurar privilégios. A corrupção
tornou-se um procedimento sistemático, constitutivo da forma de fazer política
em benefício das elites.
As
consequências sociais da livre ação dos grandes conglomerados financeiros e
industriais sobre as sociedades em que atuam são devastadoras, aumentando cada
vez mais o fosso entre um punhado de ricos, e a grande maioria, cada vez mais
privada de suas mínimas condições de vida.
Sem
capacidade para processar os conflitos de interesses cada vez mais agudos entre
o 1% e os 99%, como denunciam os movimentos Occupy, a democracia liberal, assim
como os partidos políticos submetidos à sua lógica, perdeu legitimidade e abriu
espaço para novas experimentações.
Novamente
a realidade política escapa ao controle das elites e se acirra a disputa pela
hegemonia. Essa disputa se dá tanto no plano das ideias quanto no plano da luta
social e da formulação de novas políticas públicas. Um novo projeto de
sociedade é defendido pelos indignados na Europa; pelos Occupy, nos Estados
Unidos; pelos moviementos sociais na América Latina, que há cerca de quinze
anos começaram a primeira Primavera. A segunda foi a Primavera Árabe.
Pois bem,
esse projeto que se anuncia busca submeter a economia ao controle e direção
democráticos, com vistas a priorizar o interesse das maiorias e preservar as
condições ambientais, e não mais privilegiar os grandes grupos empresariais e
financeiros. Evidentemente, o próprio conceito de democracia também mudou nessa
nova disputa. Ele expressa as esperanças e sonhos de todos os despossuídos do
planeta, que lutam pela criação social de novos direitos. Abre-se o espaço para
o questionamento das atuais instituições e a invenção democrática.
Silvio Caccia
Bava - Diretor e
editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil
Fonte:
http://www.diplomatique.org.br/editorial.php?edicao=77
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