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segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Contradições do Brasil com seus cidadãos – Literatura e História. Identidade do cidadão contemporâneo com o personagem Policarpo Quaresma

[...] fato e ficção movem-se um em direção ao outro, apesar de não se confundirem um com o outro.
[...] Absolutamente confiante na ideia do contrato social, vê-se como um igual perante os poderosos, apesar de desconfiar da honestidade daqueles que representam o poder. Julga-se sujeito da história, uma vez que a República instituía o princípio da igualdade, da liberdade e da fraternidade. Pretendendo participar da construção nacional, bem distante do poder, vive nos subúrbios cariocas, procurando buscar, a partir dos ideais iluministas da razão, os verdadeiros traços da nação. Enfim, um homem comum que quer participar da história, com pequenos feitos. [...]
Este ardor patriótico, é bom que se destaque, está sempre carregado de uma intenção de exercício de cidadania, e, em todas as vezes que o major Quaresma pretende exercer os direitos de cidadão, ele acaba sendo vítima da perseguição e de estigma pelo poder vigente. [...]

Na primeira tentativa, Quaresma procura afirmar seu direito de cidadão, enviando uma carta ao presidente da República, pedindo a adoção da língua tupi-guarani como língua nacional. Desde o princípio, Quaresma afirma, no plano da cidadania, a questão dos excluídos da história. Afinal o primeiro massacre realizado em terras brasileiras foi, justamente, o dos índios. [...] Quaresma, aliás, um admirador do poeta, procurou com sua carta-pronunciamento resgatar uma dívida ancestral com relação à população indígena. Tem a esperança de que a República, com os seus ideais de igualdade e fraternidade, venha a reconhecer a importância do indígena brasileiro através da adoção da língua tupi-guarani como língua nacional. A carta-pronunciamento é o exercício de liberdade do cidadão comum, que sai do anonimato, pretendendo inscrever-se na história. Esse ato de liberdade terá como resultado o seu recolhimento a um manicômio, uma vez que o poder republicano o tomará como um louco. Quaresma não estará sozinho nesta galeria de loucos da República. Antônio Conselheiro, de Canudos, João Maria, do Contestado, e tantos outros irão criar uma vasta literatura sobre a loucura de sonhar com outra ordem no mundo. Entretanto diferentemente de outros personagens que abalaram a República em seus primórdios, Quaresma representa o homem comum da cidade, sua visão de mundo é urbana e ele está, durante todo o tempo, às voltas com a questão da cidadania. Sua obsessão racionalista é absolutamente enlouquecedora.
[..] Apesar de viver num mundo suburbano, Quaresma é um homem letrado. Está longe do convívio das elites e se ressente disso, pois a república das letras não lhe concede espaço como cidadão.
Quaresma é um Quixote bastante letrado dos tempos modernos. Tendo, ao seu lado, o amigo Sancho Pança, isto é, o também letrado  Ricardo Coração dos Outros, ataca as fortalezas da política republicana, do mundo das letras e da cultura oficial. Não vive à margem da sociedade, participa dela e, com seu nacionalismo ingênuo, pretende igualar-se aos poderosos. A narrativa do romance de Lima Barreto é exemplar com modelo literário, capaz de construir o cidadão comum como sujeito histórico. Seus atos de liberdade, apesar de serem vistos como desviantes e loucos, chamam a atenção do poder. A carta-pronunciamento incomodaas autoridades e também as pessoas que se espantavam com as suas excêntricas aulas de vilão (aliás, o poder público e a sociedade civil no Brasil sempre estiveram de mãos dadas no que tange ao autoritarismo). Na partilha paradigmática do normal e do anormal, Quaresma é facilmente catalogável. Por sinal, quantos outros loucos anônimos não perambulavam pelas ruas das cidades no início da República? A galeria é extensa e podemos identificar, inclusive, personagens de vários perfis, por exemplo, os anarquistas, esses estrangeiros que começava a causar preocupação das autoridades, por incitarem os operários às lutas pelos seus direitos. Quem diria que, alguns anos mais tarde, os modernistas de São Paulo, estes filhos rebeldes das elites paulistas, iriam proclamar, sem constrangimentos, a palavra de ordem tupi or not tupi,  muito semelhante àquela que custou a Quaresma o recolhimento ao manicômio, quando ele propôs a adoção do tupi-guarani como língua nacional.
[...]
O discurso psiquiátrico serviu de base para a definição dos perfis desses personagens anônimos que ousaram subverter a ordem estabelecida. Sobre eles, caiu o manto da loucura, e Quaresma não foi o único personagem anônimo da história que acabou em um manicômio. Em um período mais recente, o discurso psiquiátrico serviu para provar a insanidade mental de um camponês que lutou pelo direito à terra, na década de 1970, durante a ditadura militar. Antonio Galdino, um homem do campo, profundamente religioso, produziu uma narrativa trágico-mítica do fim do mundo, quando se viu diante do perigo de perder a sua terra para empresas interessadas na construção de uma hidroelétrica no oeste do estado de São Paulo. Sua narrativa messiânica e suas prédicas atraíram centenas de deserdados da terra, e a ditadura militar interpretou o seu discurso como ameaça à ordem e relacionou-o com o discurso político das esquerdas brasileiras adeptas da guerrilha rural. No inquérito policial, a narrativa de Galdino, com visões do fim do mundo, acompanhada de tragédias e desgraças, assim como aquela de Quaresma, foi usada pela justiça militar como prova de sua insanidade.
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Novamente, Quaresma insiste em tornar-se um cidadão útil e responsável. Agora, inclusive, vivendo no sítio Sossego, tecendo a trama de um trabalho cotidiano para construir a nacionalidade. O cidadão comum, imbuído dos ideais pátrios, seria, dessa vez, capaz de vencer as dificuldades e ajudar a construir a verdadeira nação. [...] Quaresma em sua luta por um novo mundo agrário. [...] Os homens comuns não fazem história a partir de seu cotidiano, apenas a transgressão dá a eles visibilidade. É por essa razão que, ainda hoje, podemos conhecer melhor a história das classes subalternas vasculhando os arquivos policiais. Neles, os personagens anônimos ganham destaque e tornam-se sujeitos históricos. O homem comum, na falta de uma narrativa literária que o engrandeça, só entra na história a partir dos registros policiais.
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Talvez o autor tenha deixado para esse personagem a vivência da tragédia dos homens comuns diante dos massacres do poder. Em nenhuma outra obra de Lima Barreto aparece a tragédia do homem comum diante de um poder despótico. Quaresma imortalizou-se na literatura por representar uma infinidade de vítimas anônimas e por desmascarar os crimes do poder republicano.
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As notícias do massacre dos marinheiros da Revolta da Chibata chegaram, com certeza, aos ouvidos de Lima Barreto antes dele finalizar o Policarpo Quaresma. Conta-se que, entre os dias 22 e 25 de novembro de 1910, mais de dois mil marinheiros amotinados mantiveram a cidade do Rio de Janeiro sob um clima de medo, ao assaltarem inúmeros navios da marinha brasileira, reclamando dos maus-tratos físicos e das péssimas condições de trabalho nos seus serviços. [...] Esses marinheiros liderados por João Cândido, que ficou conhecido como o ‘almirante negro’, acabaram fazendo um acordo de deposição das armas e o governo federal prometeu-lhes, em troca, uma anistia política. Algumas semanas após o término da sublevação, mais de seiscentos marinheiros foram presos, sob o pretexto de reorganizarem o movimento, e, às vésperas do Natal, dezesseis deles morreram em consequência de queimaduras causadas pela cal virgem que foi jogada sobre eles. Após essa chacina, no início do ano de 1911, 105 marinheiros foram mandados para os seringais da Amazônia a bordo do cargueiro Satélite, sendo que nove dentre eles foram fuzilados e jogados ao mar e o restante desapareceu e morreu na Amazônia. [...] Essas narrativas de massacre  tornavam-se comuns no início da República e representavam o sinal do cidadão comum na cena da história.
[...]
Alguns anos após o relato de Quaresma, isto é, em junho de 1917, um grande movimento grevista, liderado por militantes anarquistas, ocorre em São Paulo. Durante uma semana, a cidade de São Paulo ficou praticamente paralisada pro uma greve que se espraiou, rapidamente, após a morte de um operário pelas forças policiais. Após uma inusitada repressão policial, a greve termina e inúmeros militantes anarquistas são sumariamente enquadrados na lei de expulsão de estrangeiros do País e, pioneiramente, acusados de delito de opinião. Pela primeira vez na República, cidadãos eram expulsos do País por se expressarem na linguagem política do anarquismo. Pela primeira vez, a constituição liberal brasileira condenava cidadãos comuns por delito de opinião. Os processos de expulsão constituem-se em verdadeiras farsas jurídicas e inúmeros anarquistas foram embarcados no navio Curvelo, rumo ao estrangeiro e à Amazônia. Na ocasião, inúmeros jornais de São Paulo se utilizaram do relato do massacre da Revolta da Chibata para despertar a opinião pública para os riscos que corriam os anarquistas deportados no navio Curvelo. Os relatos do massacre da Chibata chegaram a ser usados, inclusive, pelo advogado de defesa dos anarquistas e também pelo líder da Revolta da Chibata, João Cândido. Ele chegou a comparar a situação dos presos políticos da greve de 1917 com a dos marinheiros mortos em 1910. A narrativa de massacres, em seus mais variados modelos – romance, panfleto, notícia de jornal –, acabou por constituir-se num elemento importante de denúncia da violação da cidadania no Brasil durante as primeiras décadas da República.
Dentre essas narrativas, algumas delas ainda não foram esclarecidas devidamente. [...] A mais impressionante foi publicada no jornal Fanfulla (1917), de língua italiana, um jornal não operário, com um título muito sugestivo e, ao mesmo tempo, assustador: [...] Nesse jornal, existe um relato de que mais de duzentos operários teriam sido eliminados e desaparecidos pela ação policial durante a greve de 1917 e que seus  corpos teriam sido enterrados em 210 fossas da quadra 139 do cemitério do Araxá.
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Representam a indignação do cidadãos comuns, dos personagens anônimos que vivem à margem da história. Mostram os crimes monstruosos que são cometidos em nome da lei e da ordem. [...] também a opinião pública de São Paulo, que saiu em defesa dos anarquistas, utilizou-se dos relatos sobre a deportação dos marinheiros para defender os prisioneiros que tinham sido embarcados rumo ao estrangeiro no navio Curvelo.
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Os homens comuns e as personagens anônimas tiveram um lugar na história a partir desses autores.
[...] nas narrativas de massacres um acontecimento remete ao outro, não devemos esquecer que a chacina de Eldorado dos Carajás aconteceu, praticamente, no mesmo local onde, na década de 1970, ocorreu o massacre dos guerrilheiros do Araguaia. [...] a República no Brasil ainda não terminou de enterrar as suas vítimas. Mais uma razão para os historiadores  darem crédito às narrativas de massacres, porque elas podem ser sinais de acontecimentos obscuros e pouco esclarecidos, ou de tentativas de cidadãos comuns de tornarem-se agentes da história.
Como não deixar de considerar O triste fim de Policarpo Quaresma como um dos primeiros relatos de desaparecidos da República?

(DECA, Edgar Salvadori de. Quaresma: Um relato de massacre republicano entre a ficção e a História. In: Pelas margens. Outros caminhos da História e da Literatura. São Paulo: Campinas, Ed. Unicamp, 2000. p. 137-157)

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