Clovis Renato
Costa Farias (advogado, professor universitário, doutor em Direito, membro do
GRUPE e da Excola)
Artigo publicado na Revista Informa Sindical
O modelo proposto
pelo Governo Federal em uma perspectiva mais voltada para a redução do Estado (cortes
de gastos com políticas públicas, terceirização, etc.), maior liberdade para o
mercado e priorização de empregos independentemente dos direitos deles
decorrentes e redução do diálogo social, tem se materializado com a extinção de
dezenas de Conselhos compostos pela sociedade civil (Decreto n.º 9.759, editado
em 11 de abril de 2019), imposições abruptas aos sindicatos (MP 873), extinção
de direitos laborais, perseguição a líderes e a movimentos sociais.
Algo que vem sendo
notado desde o governo anterior que construiu a “deforma” trabalhista com a
alteração profunda da Consolidação das Leis do Trabalho, a qual vinha anualmente
tendo modificações pontuais, mas que, em 2017, foi alterada em mais de cem
artigos em rito que contraria as normas do devido processo legislativo, com
normas claramente inconstitucionais e contra os tratados internacionais sobre
direitos humanos. Os impactos ficaram claros com a redução de mais de 40% das
ações trabalhistas, cortes de orçamento em 90% para a Justiça do Trabalho,
replicados por 20 anos, bem como a dificuldade de acesso à justiça, tratamentos
desiguais entre trabalhadores, fim da ultratividade das normas de negociação
coletiva e alteração do sistema de custeio sindical, que já estão sendo
sentidos pela falta de negociação coletiva reinante em 2018/2019 e
incompreendidas, especialmente, pelos trabalhadores.
Após os revides à
Medida Provisória 873/2019 que, dentre outros fatores, vedou o desconto em
folha das contribuições dos representados aos sindicatos, sinaliza para o fim
da unicidade sindical, com anúncios de encaminhamento de PEC alteradora do art.
8º, IV da Constituição, pondo fim à unicidade sindical.
O discurso de viabilização
da “liberdade” em um contexto demarcado por várias atitudes arbitrárias do
governo central, já combatidas pela Procuradoria Geral da República e mitigada
por centenas de decisões judiciais suspendendo efeitos de normas, tais como a
MP 873/2019, enseja conduzir o povo à falsa noção de autonomia da vontade, ao
mascarar a ideia central de maior enfraquecimento das categorias na defesa dos
direitos dos representados.
A ignorância, seja
por não conhecimento do sistema sindical e suas atividades de proteção
coletiva, seja pela compreensão errada ativa sobre o papel das entidades sem a
participação dos trabalhadores, contribui para o acirramento das ações
invasivas e interventivas do governo brasileiro.
Em tal conjuntura, o
governo federal assinala na mídia que, após a reforma da previdência, proporá o
fim da unicidade sindical. Alerta o Secretário Especial de Previdência e
Trabalho, Rogério Marinho (que capitaneou a Lei nº 13.467/2017 – “deforma”
trabalhista no governo anterior), a ideia é permitir a concorrência entre sindicatos
e “estimular a melhoria de performance e a prestação de serviços aos
associados”.
O discurso vem
maquiado pela sombra da Convenção Relativa à Liberdade Sindical e à Proteção do
Direito de Sindicalização (Convenção nº 87/OIT), elaborada pela Conferência
Geral da Organização Internacional do Trabalho, convocada em São Francisco pelo
Conselho de Administração da Repartição Internacional do Trabalho, e reunida
naquela cidade em 17 de junho de 1948 em sua trigésima primeira reunião.
Conforme o Artigo 2,
os trabalhadores e os empregadores, sem nenhuma distinção e sem autorização
prévia, têm o direito de constituir as organizações que estimem convenientes,
assim como o de filiar-se a estas organizações, com a única condição de
observar os estatutos das mesmas. Não trata, assim, do modelo de unicidade
adotado pelo Brasil, que dispõe ser livre a associação profissional ou
sindical, observado que é vedada a criação de mais de uma organização sindical,
em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na
mesma base territorial, que será definida pelos trabalhadores ou empregadores
interessados, não podendo ser inferior à área de um Município (art. 8º, II,
Constituição da RFB de 1988).
Com todas as
dificuldades, o índice atual de filiação média dos sindicatos representantes da
iniciativa privada é de 11%, mas há sindicatos com mais de 20 mil filiados em funcionamento
por categoria. Entre os servidores públicos, com a ratificação da Convenção nº
151/OIT em 2010, a maioria das entidades tem mais de 80% de filiação. Porém,
com eventual e abrupto fim da unicidade, há uma tendência de as categorias patronais
ampliarem as dificuldades de negociação coletiva por não reconhecerem a
representação das entidades que historicamente detinham tal legitimação para
negociar pelos trabalhadores, o que implicará em mais perdas de direitos e
confirmará a pergunta do presidente aos trabalhadores: “querem direitos ou empregos?”. Questiona-se que tipo de empregos em
um mundo que firma em incontáveis tratados internacionais sobre direitos humanos
a preponderância da dignidade da pessoa humana.
Desmantelo maquiado
de “liberdade” pelo fato de não haver diálogo social, nem sequer tempo que viabilize
a transição de modelos, sendo verdadeira imposição do Estado e, em especial,
por ser imposta pelo governo em retaliação às entidades, por pretenderem discutir
as políticas sociais do novo governo. Completa a implosão do sistema
confederativo iniciada com a Lei nº 13.467/2017, a fragilização das entidades
ampliada pela MP nº 873/2019 e, imediatamente, possibilitará o fim das
negociações coletivas, já inexistentes em algumas categorias após a “deforma”,
em face da baixa representatividade.
Desse modo, torna-se
importante traçar paralelo a partir das decisões do Comitê de Liberdade
Sindical da OIT, na Recopilação de Decisões do CLS/2018, em que há demarcação
de ampla pluralidade e fragmentação das categorias, com a viabilidade de
diversos sindicatos representando os trabalhadores em uma única empresa, por
exemplo. Colisão que pode inviabilizar o movimento sindical e desproteger os
trabalhadores, com necessidade de diálogo social efetivo e, se for o caso,
tempo para a reorganização das entidades, antes de qualquer ato normativo
verticalizado por parte do governo, garantindo-se clima de plena segurança,
liberdade e evitando-se maior derrocada de direitos individuais e coletivos dos
trabalhadores.
A Recopilação traz os
verbetes 475-501 tratando sobre “Unidade e pluralismos das organizações”, em
diversos verbetes fala-se de liberdade em um clima de plena segurança (Verbete
nº 475). Torna-se evidente a importância da livre eleição dos trabalhadores no
que diz respeito a criação de suas organizações e filiação as mesmas para que se
respeite a liberdade sindical.
Assim, dispõe-se que
pode haver mais de uma organização sindical por setor determinado, desde que
por escolha dos trabalhadores (Verbete nº 477). A viabilidade de criação de
mais de uma organização sindical por empresa vem disposta no Verbete nº 479 da
Recopilação do CLS, reiterando-se no Verbete nº 480 que fere a Convenção nº 87
impedir que coexistam dois sindicatos por empresa. Ademais, o V. 482 demarca
que disposições que exigem apenas um sindicato por empresa, ofício ou
profissão, são incompatíveis com o artigo 2 da Convenção nº 87 da OIT.
Desse modo, o quadro
impõe efetiva liberdade dos trabalhadores e entidades já constituídas,
garantindo-se, se for o caso de efetiva modificação do modelo de unicidade para
a pluralidade sindical como proposto pelo governo, para que os trabalhadores
com a experiência de suas entidades possam se reestruturar, sob pena de
derrocada incontrolável da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais
sociais, bem como os instrumentos normativos internacionais que tratam sobre
negociação coletiva e liberdade sindical. Com o tempo, em casos de conflitos
envolvendo categorias mais fortes, gerará, inclusive, maiores prejuízos à
economia, à sociedade e ao povo como um todo, por falta de entidade legitimada
a negociar o retorno à normalidade, como o caso presente dos caminhoneiros.
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