Entrevista
especial com Vicente Adriano
“A redução
da produtividade em novas terras chega a atingir 60%, o que coloca famílias em
situação de insegurança alimentar. Assim, quanto maior for o avanço do
agronegócio, menor será a disponibilidade de alimentos”, destaca o ativista.
Vejamos esta
história. Um país que tem em seu povo uma lógica muito própria de vida. Tribos,
que aos olhos estranhos podem ser vistas como primitivas, têm uma relação de
subsistência com a terra. No entanto, povos europeus chegam e subvertem essa
relação. O homem nativo passa a ser mão de obra, e a terra, espaço para
formação de grandes monoculturas. Estamos no início do século XVI. Passam-se
anos, o povo serve aos interesses dos colonizadores, surgem conflitos, e cai em
miséria.
Chegamos ao
século XXI e este lugar está entre o piores em Desenvolvimento Humano. Começa a
se pensar uma saída. Qual? A abertura de seu patrimônio cultural e natural a
estrangeiros mais uma vez, numa espécie de recolonização. Há quem possa pensar
que estamos falando de Brasil. Mas, não. Falamos de Moçambique, o país do
sudeste da África, agora dado à exploração de multinacionais do agronegócio. E,
pasme, com significativa participação brasileira. O quadro acima é pintato por
Vicente Adriano, integrante da União Nacional de Camponeses, em entrevista
concedida por e-mail à IHU On-Line.
Adriano
destaca que a instalação do agronegócio está sendo vista como grande forma de
livrar o país da miséria. Mas o preço é alto, e o resultado ainda pode não ser
o esperado. “Experiência dos últimos cinco anos tem mostrado que grandes
investimentos em culturas alimentares em Moçambique respondem a uma demanda
internacional por alimentos, focando a sua produção em commodities”, completa.
O problema é que enquanto se manda alimento para fora, famílias são destituídas
de suas terras e deixam de produzir alimentos para si mesmas. “Quem alimenta o
país são os camponeses, que representam mais de 70% da população, produzindo
mais de 90% dos alimentos consumidos no país.”
Países como
Portugal e Brasil chegam ao corredor de Necala com suas empresas. Região que
começa a ser entregue a multinacionais que se apoderam da terra, das sementes e
da tecnologia e deixam os camponeses completamente reféns e ainda poluem a
terra. “Enquanto os movimentos de campo trabalham na divulgação e adoção de
práticas agroecológicas, o Ministério da Agricultura e Segurança Alimentar de
Moçambique segue um curso diferente, apostando no uso cada vez maior de
agrotóxicos”, completa, ao referenciar a prática exploratória do agronegócio.
Ao longo da entrevista, Adriano ainda destaca o papel do governo e da Igreja
nessa reabertura e os princípios que movimentos camponeses percorrem para
defender a terra e a cultura dos nativos.
Vicente
Adriano é coordenador de advocacia, comunicação e cooperação da União Nacional
de Camponeses (UNAC) de Moçambique.
Confira a
entrevista.
IHU On-Line
- O que leva o governo de Moçambique a buscar parcerias com outros países para
estimular a agricultura de exportação/de grande escala?
Vicente
Adriano - Há dois fundamentos falaciosos centrais alegados pelo governo. O
primeiro se deve ao fato de olhar para a agricultura de grande escala como uma
resposta imediata ao problema de insegurança alimentar e nutricional, onde a
situação de desnutrição crônica é mais alarmante. Os dados do último Inquérito
Demográfico e Saúde (IDS), divulgados em 2013, revelam que 43% das crianças
menores de cinco anos sofrem de desnutrição crônica. Porém, em algumas
províncias como Nampula, Cabo Delgado e Zambézia estes dados estão acima de
50%, representando um problema grave de saúde pública cujas consequências são
irreversíveis. Porém, a experiência dos últimos cinco anos tem mostrado que
grandes investimentos em culturas alimentares em Moçambique respondem a uma
demanda internacional por alimentos, particularmente os mercados emergentes
asiáticos e o velho mercado europeu, focando a sua produção em commodities,
como soja, banana e cana-de-açúcar. De fato, quem alimenta o país são os
camponeses, que representam mais de 70% da população, produzindo mais de 90%
dos alimentos consumidos no país.
O segundo
fundamento é a alegação da criação de postos de trabalho no meio rural. Esta
concepção é similar à adotada no período após a independência, que assentava na
ideia de proletarização do campesinato, por via de criação de aldeias comunais,
cooperativas agrícolas e empresas estatais. Esta concepção de criação de postos
de trabalho é falaciosa, visto que em 1.500 hectares na agricultura camponesa
trabalham aproximadamente mil famílias; ao desterrá-las, perdem o seu emprego
pelo menos 2 mil pessoas e, em contrapartida, o novo investimento pode criar em
cada 100 hectares dois postos de trabalho. Por exemplo, nas plantações
florestais de eucalipto e pinheiros nas províncias de Niassa e Nampula, a
situação é ainda pior. Em cada mil hectares são criados apenas dois postos de
trabalhos locais.
Assim,
devemos ver esta orientação para a agricultura de grande escala num prisma
ainda maior, onde o continente africano é visto como a nova fronteira agrícola,
com países como Moçambique, Etiópia e Sudão como os grandes focos do
investimento em aquisições de terra. Ao mesmo tempo que este processo é
acompanhado com importantes benefícios econômicos para a elite política local,
que é simultaneamente econômica, por via de tráfego de influência, clientelismo
e esquemas obscuros de corrupção.
IHU On-Line
- De que forma a relação com investidores estrangeiros vem impactando na
produção de alimentos em Moçambique? Como isso tem se refletido na economia do
país? Que culturas estão sendo introduzidas em Moçambique?
Vicente
Adriano - Penso que um exemplo prático ajudaria a responder esta questão. Ao
nível da Província de Niassa, o governo de Moçambique tem a ambição de
implantar investimentos em plantações florestais estimadas em 3 milhões de
hectares, o que tornaria Moçambique um dos maiores produtores de celulose na
África, ao lado da vizinha África do Sul. No entanto, o avanço das plantações
florestais da Chikweti, uma empresa de capitais suecos recentemente adquirida
pela Lúrio Green Resources, em aproximadamente 50 mil hectares já plantados,
levou à redução drástica da produção do feijão e milho nos distritos de Sanga,
Lago e Chimbonila. Isso resultou na expulsão das comunidades para terras
marginais e improdutivas.
Para que se
tenha ideia, a redução da produtividade em novas terras chega a atingir 60%, o
que obviamente coloca as famílias em situação de insegurança alimentar. Assim,
quanto maior for o avanço do agronegócio no Corredor de Nacala, menor será a
disponibilidade de alimentos, o que fará aumentar os índices de insegurança
alimentar na região e não só, visto que a mesma é o celeiro do país.
Paralelamente, quanto menor for a disponibilidade de alimentos, a inflação
localizada vai aumentando, o que obviamente tem impacto na inflação nacional.
Soja,
eucalipto e pinheiro
Em termos de
culturas alimentares, a de maior expressão é a soja. Por sinal, uma cultura
nova introduzida em Moçambique nos anos 1980, no distrito de Gurué, Província
da Zambézia, cuja produção média anual até a safra 2011/2012 era de pouco mais
de 30 mil hectares. Para a presente safra 2014/2015, estima-se que sejam
colhidas acima de 100 mil toneladas. Sendo que, futuramente, com programas como
Prosavana e a Nova Aliança do G8, caso avancem nos moldes perversos em que
foram concebidos, ainda podem aumentar a produção em milhões de toneladas
produzidas pelas grandes corporações.
Por outro
lado, assiste-se igualmente a uma massiva introdução das plantações florestais
de eucalipto e pinheiro nas províncias de Nampula, Niassa, Zambézia e Manica.
As culturas são controladas por duas grandes empresas — a Portucel, de capitais
portugueses, que conta com apoio financeiro do International Financial
Corporation - IFC, o braço financeiro do Banco Mundial, e a Lúrio Green
Resources —, ambas detendo concessões de terra de cerca de 660 mil hectares.
Vale destacar que os impactos de ambas as empresas são catastróficos sobre as
comunidades.
IHU On-Line
- Estimativas anteriores mostram que há alguns anos o uso de adubos, tração
animal ou sementes selecionadas ainda era bastante restrito em Moçambique. Como
é a produção local atualmente?
Vicente
Adriano - Os sistemas informais e seculares de sementes tradicionais continuam
dominando o setor, contribuindo com a disponibilização de sementes para mais de
70% da produção nacional. O maior destaque é para sementes nativas de cereais,
legumes, assim como as culturas de propagação vegetativa, como a batata-doce e
a mandioca. No entanto, por via da Nova Aliança do G8, deu-se a revogação de
toda legislação de sementes, com a aprovação do Decreto nº 12/2013, de 10 de
abril (Regulamento de Sementes), que impõe restrições no manuseio de sementes
nativas, conferindo, assim, mais poder ao setor comercial das empresas, prevendo-se,
no curto prazo, a entrada de gigantes como a Monsanto. Por outro lado, o mesmo
instrumento, contrariamente ao Decreto nº 41/94, de 20 de setembro, autoriza o
uso e comercialização dos Organismos Geneticamente Modificados, bastando para o
efeito a adoção de uma legislação específica que já está sendo preparada pelo
Ministério da Ciência e Tecnologia de Moçambique.
O uso de
fertilizantes químicos e pesticidas em Moçambique é dos mais baixos em nível de
África, estando mesmo abaixo de 5%. O tronco central da agricultura camponesa
tem sido a agricultura de conservação, associada a sistemas produtivos
plurativos. No entanto, enquanto os movimentos de campo, como a União Nacional
de Camponeses – UNAC, trabalham na divulgação e adoção de práticas agroecológicas,
o Ministério da Agricultura e Segurança Alimentar de Moçambique - MINAG segue
um curso diferente, apostando no uso cada vez maior de agrotóxicos. A prova
disso é a recente aprovação do Regulamento sobre Gestão de Fertilizantes,
através do Decreto nº 11/2013, de 10 de abril, que em grande medida elimina as
medidas restritivas que o decreto precedente impunha ao manuseio e uso de
fertilizantes.
IHU On-Line
– A União Nacional de Camponeses - UNAC e a Ong GRAIN revelam que muitas dessas
áreas de cultivo para a agricultura de exportação desalojam camponeses do
Corredor de Nacala. Qual a situação dessas famílias?
Vicente
Adriano - A situação evidentemente é dramática, visto que estas famílias foram
desterradas para áreas improdutivas e não têm a quem recorrer para fazer valer
os seus direitos. A liberdade de expressão e reivindicação em Moçambique varia
em função da localização geográfica. Ou seja, há evidências de que quanto mais
distante do meio urbano as pessoas se encontram, menor é a liberdade de expressão
e reivindicação, dada a repressão estrutural do aparelho governativo. Vale
lembrar que os impactos cumulativos vão se tornando cada vez maiores na medida
em que os planos de investimento destas empresas vão se efetivando. À medida
que uma empresa que detém uma concessão de 10 mil hectares vai avançando,
significará mais pessoas desalojadas.
"Famílias
foram desterradas para áreas improdutivas e não têm a quem recorrer para fazer
valer os seus direitos"
Nos últimos
anos, temos assistido a um uso abusivo, por parte do Conselho de Ministros, dos
poderes que lhe são conferidos pela Lei de terras (Lei nº 19/97, de 1º de
outubro), particularmente no artigo que autoriza o Conselho a conceder áreas
superiores a 10 mil hectares desde que a sua efetivação seja possível tendo em
conta o mapa local de uso de terra. No entanto, pode ainda ser que o ministro
da Agricultura não esteja cumprindo efetivamente as competências de dar parecer
sobre os pedidos de uso e aproveitamento da terra relativos a áreas que
ultrapassem os 10 mil hectares.
IHU On-Line
– Por que essa região é cobiçada, ainda que seja pertencente à África
subsaariana?
Vicente
Adriano - Há um estereótipo muito banal construído no mundo afora sobre a
África subsaariana. Durante anos, foi apelidada de África Negra, sendo que
muitos ocidentais e os menos atentos a consideram símbolo da desgraça, a
periferia das periferias, depositária de todos os males da humanidade. Devemos
ter a coragem de dizer ao mundo que a África subsaariana foi a que mais sofreu
com as formas mais perversas da escravidão, que permitiu a acumulação da
riqueza no velho continente europeu, que o sangue derramado pelos escravos
africanos fez desenvolver substancialmente os Estados Unidos e tantos outros
países. É um ato de hipocrisia ver figuras como Barack Obama, como o fez na
última reunião de cúpula entre a África e os EUA em 2014, dizer que os
africanos devem deixar de se fazer de vítimas.
Na prática é
o mesmo indivíduo que através da Nova Aliança do G8 para Segurança Alimentar
está tirando a terra de milhares de africanos. O líder político e militar de
Burkina Faso - país da África Ocidental - Thomas Sankara, como um dos líderes
da revolução democártica e popular de seu país, disse: estas iniciativas para
salvar a África representam na prática “uma reconquista cuidadosamente
organizada da África, para que seu crescimento e desenvolvimento obedecessem a
níveis e a normas que nos são completamente estrangeiros”. O mesmo sucede com o
Corredor de Nacala. Como o meu falecido avô me disse: “filho, jamais te
esqueças das tuas tradições ngonis, por mais que atravesses mares e passes por
mil escolas, continuarás sendo da tribo likuleni”.
As riquezas
subsaarianas
A África
subsaariana tem mais de 800 milhões de pessoas, é depositária de inúmeros recursos,
assim como é palco de interesses hegemônicos conflitantes que remontam à era
colonial. Em 2010, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e
Agricultura - FAO e o Banco Mundial lançaram um relatório com o título “Savana
da Guiné – sleeping giant”, que ilustra as potencialidades dessa região. Para
que se tenha ideia, a Savana da Guiné atravessa 25 países da África
subsaariana, incluindo Moçambique e o seu respectivo Corredor de Nacala.
A savana
possui cerca de 600 milhões de hectares de terra, dos quais 400 milhões de
hectares aráveis, estando apenas 10% em uso — ou seja, 40 milhões de hectares,
o que representa um grande potencial para o desenvolvimento do agronegócio, com
cerca de 360 milhões de hectares de terra. Porém, estes cálculos revelam uma
profunda ignorância na lógica de ocupação de espaços das comunidades africanas
e da função social e cultural multidimensional do uso e aproveitamento da
terra, florestas e água.
É este
potencial promovido por instituições como a FAO, Banco Mundial e outros
organismos multilaterais em cooperação com as grandes corporações e conivência
da elite política e econômica africana no poder. Isso confere regiões como o
Corredor de Nacala em Moçambique, Corredor de Mtwara e Tazara na Tanzânia, com
grandes focos de investimentos em agronegócio.
IHU On-Line
- Relatório da UNAC e da organização internacional GRAIN, concluido esse ano,
constata que várias empresas que atuam em Moçambique são registradas em
paraísos fiscais e offshores com ligações estreitas às elites políticas
moçambicanas e que estão explorando terras no Corredor de Nacala e fazendo
fortuna ao estilo da época colonial. Quais as implicações desta constatação?
Vicente
Adriano – A primeira implicação é que o envolvimento das elites políticas nacionais
fragiliza qualquer tentativa de fazer vingar a lei. Assim, fica-se claramente
numa situação de conflito de interesse entre o público e o privado. Abre espaço
para o clientelismo, corrupção e atropelo a todos os procedimentos legais. A
segunda é que este é um mecanismo que permite a evasão fiscal por estas
empresas, o que multiplica os seus lucros. Terceira: há uma restrição no acesso
à informação em relação às operações financeiras, à natureza de atividades.
Isto pode permitir o envolvimento das empresas em outras operações, não sendo
necessariamente as aprovadas pelos seus planos de investimento.
IHU On-Line
- Nesse mesmo relatório é apontada a volta do colonialismo português. Em que
consiste esta ideia e como o Brasil tem se portado diante desse cenário?
Vicente
Adriano - Constatamos que partes das empresas portuguesas que regressam a
Moçambique são firmas que remontam ao tempo colonial. Muitas acumularam riqueza
durante este período em Moçambique e outras colônias. Ocorre que, após a
independência, houve a nacionalização destas antigas fazendas. Fazendas que
passaram a pertencer a camponeses e camponesas cultivando culturas alimentares,
contrariamente às culturas de exportação cultivadas pelos colonos (tabaco,
algodão e sisal), o que à luz da lei de terra lhes confere hoje o Direito de
Uso e Aproveitamento de Terra (DUAT).
No entanto,
hoje, constata-se que estas famílias estão sendo expulsas para dar lugar às
velhas empresas colônias, cujo modelo de exploração é semelhante ao do período
colonial. Ou seja, com a produção de culturas voltadas para exportação (soja,
algodão, tabaco, milho).
O
envolvimento do Brasil deve ser visto sob duas perspectivas. A primeira é
governamental. Através de sua política externa, o Brasil se alia às potências
tradicionais na concepção e implementação de iniciativas do agronegócio. É o
caso da parceria com o Japão para o desenvolvimento do Prosavana, tendo como
base a experiência acumulada durante anos no desenvolvimento do desastroso
Programa de Desenvolvimento do Cerrado Brasileiro - Prodecer. Na sua parceria
com os Estados Unidos, através da atuação conjunta entre a Embrapa e a USAID
(agência norte-americana que trabalha o desenvolvimento internacional), o
Brasil assume um papel de potência subimperialista, como servidor dos EUA, mas
assegurando os seus interesses.
A segunda
perspectiva deriva de uma percepção pessoal. Noto que a política externa
brasileira foi capturada pelos interesses das grandes corporações
transnacionais. A mesma não representa necessariamente o ideal da cooperação
horizontal Sul-Sul e tampouco o Interesse Nacional do Brasil. O avanço das
empresas do agronegócio brasileiro para Moçambique ilustra essa matriz de
servidão da política externa para com o investimento privado. Trata-se de uma
situação similar ao papel assumido pelo Brasil para com os seus países
vizinhos, como o Paraguai, e não só, que levou à constituição da famosa
República da Soja.
IHU On-Line
- Brasil e Japão são os principais parceiros do governo de Moçambique na
implantação desse novo sistema de produção de alimentos através do programa
Prosavana. No que consiste esse programa? Quais os principais problemas que
percebem com o programa Prosavana?
Vicente
Adriano - Em relação ao Prosavana, as grandes demandas das organizações da
sociedade civil e movimentos do campo de Moçambique foram muito bem
sintetizados na Carta Aberta para Deter o Prosavana.
O documento
é dirigido ao então presidente de Moçambique, do Brasil e ao Primeiro-Ministro
japonês, e não teve uma resposta elucidativa por parte dos três governos. A
este documento associam-se as demandas apresentadas pela Campanha Não ao
Prosavana.
IHU On-Line
- O Brasil tem sua história marcada pela exploração por parte de colonizadores
de povos e terras indígenas, impondo o sistema de produção de alimentos que
subverte totalmente a lógica dos povos nativos. Agora, em 2015, acredita que o
Brasil esteja agindo da mesma forma com o povo moçambicano?
"Se o
Brasil explora o seu próprio povo, como se pode esperar que faça diferente com
outros povos?”
Vicente
Adriano - Se o Brasil explora o seu próprio povo, como se pode esperar que faça
diferente com outros povos? Obviamente, a intervenção do Brasil no âmbito do
agronegócio espelha a mesma matriz exploratória. Programas como o Prosavana
apresentam vícios insanáveis de concepção, e que em nada respondem às demandas
soberanas do meu povo. Pelo contrário, destroem e desvirtuam uma agenda voltada
para a soberania alimentar que vem sendo construída pelos movimentos do campo.
Ainda pior é
que a política externa do Brasil, no caso do Prosavana, conduzido pela Agência
Brasileira de Cooperação – ABC, não apresenta mecanismos de diálogo e abertura.
Pelo contrário, limita-se a se desculpar, atribuindo toda a responsabilidade ao
governo de Moçambique, com o pretexto de que a ABC apenas promove a cooperação
técnica.
IHU On-Linde
- A história do povo africano tem outro ponto em comum com o Brasil. A chegada
de missionários deu início a uma desculturalização. Os nativos eram
catequizados enquanto trabalhavam e cediam suas terras aos colonizadores. Hoje,
qual a postura da Igreja diante do que ocorre em Moçambique?
Vicente
Adriano - A respeito disso, o fundador da nação queniana, Jomo Kenyatta, disse:
“quando os missionários chegaram, os africanos tinham a terra e os missionários
tinham a Bíblia. Eles nos ensinaram a rezar de olhos fechados. Quando nós os
abrimos, eles tinham a terra e nós tínhamos a Bíblia”. Penso que, após a
independência, o papel da igreja na questão agrária passou a ser marginal. Com
a política da socialização do meio rural introduzida pelo então governo
socialista, que tinha em vista a proletarização do meio rural por via das
aldeias comunais, as cooperativas de produção e as empresas estatais, o papel
da igreja passou a ser secundário. Até porque, neste período, adotou o slogan
marxista da religião como o ópio do povo, assim como o combate ao
obscurantismo.
Penso que
hoje a igreja está mais sensível às questões globais da defesa dos direitos
humanos, incluindo a questão agrária. No entanto, dada a pressão política,
muitas congregações religiosas não se posicionam publicamente. Assistimos a
alguma abertura, por exemplo, do lado da Conferência Episcopal da Igreja
Católica. Mas esperamos maior engajamento. Em regiões de maior incidência de
conflitos como em Nampula, vê-se uma intervenção das Comissões Pastorais de
Terra da Cidade de Nampula e de Nacala. Esperamos que estas frentes se
multipliquem e os gritos de pressão aumentem junto do governo para que se
altere este cenário negro.
IHU On-Line
- O Brasil vive o chamado conflito da terra e tem muitas dificuldades de
realizar um projeto eficaz de reforma agrária. UNAC e GRAIN acompanham esse
processo? Como veem esse processo e qual a relação que podem fazer com a
situação de Moçambique?
Vicente Adriano
- Temos acompanhado as lutas dos nossos irmãos brasileiros, particularmente por
uma reforma agrária cujas jornadas seguem em marcha há mais de três décadas.
Como movimento do campo, a UNAC é solidária a esta luta e pensamos igualmente
que o acesso à terra precisa ser democratizado, assegurando o cumprimento da
sua função social. Não só a terra, mas todos os bens (terra, água, florestas,
minérios, ar e outros) pertencem ao povo e não devem ser capturados por uma
pequena elite no poder, ou pelas nações mais poderosas.
"Acesso
à terra precisa de ser democratizado, assegurando o cumprimento da sua função
social"
A situação
de Moçambique e a do Brasil são diferentes, mas caminham no mesmo sentido. Os
movimentos do campo no Brasil lutam pelo acesso à terra. Os movimentos
moçambicanos lutam para preservar a terra, a maior conquista que ganharam com
independência. Porém, a situação de Moçambique, com o avanço do agronegócio,
tende igualmente a levar ao surgimento de grupos de famílias e comunidades sem
terra.
Os
movimentos do campo de Moçambique e do Brasil têm uma pauta comum. Ela consiste
em garantir que: a edificação da soberania alimenta, assegurando a
transformação social para um estado de justiça social, econômica, política e
cultural.
IHU On-Line
- Em 2013, foi realizada a primeira Conferência Triangular dos Povos. O
encontro discutiu a forma como a terra em Moçambique vem sendo explorada. Quais
os avanços conquistados desde então?
Vicente
Adriano - Mais do que discutir a forma como a terra vem sendo explorada, a
primeira Conferência Triangular em 2013, assim como a segunda em 2014, tiveram
o mérito de congregar as grandes pautas de luta dos movimentos do campo,
comunidades, organizações da sociedade civil de Moçambique, Brasil e Japão, em
torno do Prosavana. Também quer apresentar propostas alternativas e este modelo
de desenvolvimento agrícola. A grande conquista destes movimentos foi a
consolidação da sua unidade, ao mesmo tempo que conseguiram alterar o avanço de
algumas componentes do Prosavana, como a instituição de um Banco de Terra e a
avalanche de investidores brasileiros ávidos pelas terras do Corredor de
Nacala; assim como retardaram o lançamento do Plano Diretor do Prosavana, nos
moldes perversos em que fora concebido, dando uma oportunidade aos governos
para instituição de mecanismos de um diálogo democrático, inclusivo e
transparente. Porém, penso que ainda há um longo caminho de lutas e resistência
a ser trilhado.
IHU On-Line
– Moçambique — e a África de um modo geral — é visado pela exploração de
minerais. Há, inclusive, empresas brasileiras atuando nessa área. Em que
condições se dá a exploração de recursos naturais e da mão de obra através da
mineração?
Vicente
Adriano - Os recursos minerais devem ser vistos como patrimônio dos povos, cabendo
a estes decidir os moldes e mecanismos do seu aproveitamento. No entanto, a
prática nos mostra que estes são assumidos como uma oportunidade da elite no
poder de tirar o maior proveito dos mesmos. Daí, que mais do que uma bênção,
estes se transformam em maldição para milhões de pessoas um pouco pelo mundo.
E, nos casos mais extremos, como o da República Democrática do Congo, em fonte
de conflito armado.
No caso de
Moçambique, a exploração do carvão mineral na província de Tete evidencia este
desrespeito pelas comunidades locais. Lá, assistimos reassentamentos
compulsivos, condições de trabalho deploráveis. Para que se tenha ideia,
olhando para os investimentos da Vale, Rio Tinto, Jindal e Minas do Rovubue,
perto de 5 mil famílias foram sujeitas a reassentamentos, quer pela atividade
mineira direta ou para infraestruturas de logística. Além disso, prevê-se que
nos próximos três anos estes números ultrapassem 10 mil famílias, com a entrada
plena dos novos investimentos.
IHU On-Line
- Moçambique tem um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano, segundo a
Organização das Nações Unidas - ONU. Quais são os principais problemas e como
superá-los sem dizimar com os recursos naturais e a cultura local?
Vicente
Adriano - Trata-se de uma questão complexa, no entanto a resposta reside na
estrutura da nossa própria economia. Os dados revelam que a agricultura
contribui com quase 25% do Produto Interno Bruto - PIB, emprega 81% da
população economicamente ativa, dos quais mais de 95% são camponeses, e
responde pela produção de mais de 90% de alimentos. Em contrapartida,
analisando o orçamento, nota-se que no último quinquênio foram alocados em
média apenas 5% do orçamento para a agricultura. Isso contraria a declaração de
Maputo de 2003, em que os líderes africanos se comprometeram a incrementar o
orçamento para agricultura em pelo menos 10%. Para piorar este cenário, dos 5%
alocados à agricultura, perto de 60% destes recursos ficam ao nível central,
entre 10% a 20% a nível provincial, e pouco mais de 20% vai para investimento
na produção. Vale lembrar que o setor da defesa recebe mais recursos do que a
agricultura.
Na última
década, a economia moçambicana cresceu em média 7%. No entanto, os índices de
redução da pobreza estagnaram a partir de 2012, estando hoje em 54%. Em algumas
províncias, a pobreza aumentou. É o caso da província de Gaza, a sul de
Moçambique. Este cenário é o reflexo das prioridades de desenvolvimento do
país, cujo crescimento econômico é sustentado pelo setor extrativista, de
construção, e não no investimento nas pessoas. Paralelamente se constata uma
redução de investimentos nos setores sociais, como a saúde, cujo sistema
público continua com problemas profundos ao mesmo tempo que a sua cobertura
nacional é limitada.
Incentivos
fiscais aos “exploradores”
Os
incentivos fiscais dados aos grandes investimentos como a Vale são
inaceitáveis. Não se justifica que o cidadão comum tenha que pagar mais
impostos, ao passo que as grandes empresas gozam de isenções fabulosas. Isso
reduz a capacidade de arrecadação de receitas pelo estado, que poderiam ser
investidas em outros setores.
Por outro
lado, a corrupção, o clientelismo e o nepotismo minam a administração pública,
provocando prejuízos avultados para o povo. Estes são males que precisam ser
combatidos. No entanto, os que presumivelmente deviam fazer valer a lei são os
infratores, pelo que, não se pode ser juiz em causa própria.
IHU On-Line
- Como é possível melhorar a qualidade de vida destas pessoas, sem que elas
necessariamente tenham que perverter sua cultura perante a lógica produtivista
e exploradora do agronegócio internacional?
Vicente
Adriano - Os nós de estrangulamento para a agricultura já foram identificados
por diversos estudos e relatórios, incluindo potenciais saídas. Se olharmos para
a extensão pública veremos que, nos anos 1980, Moçambique tinha pouco mais de
mil extensionistas. Hoje, o país conta com perto de 1.300 extensionistas para
assistir a cerca de 7 milhões de hectares cultivados. É impossível. O aumento
da rede de extensionistas é uma questão emergencial.
O setor das
sementes foi totalmente destruído pelas políticas do ajustamento estrutural. A
pesquisa deixou de estar a serviço da extensão. Assim, a massificação de
produção de sementes adaptadas às condições locais deve ser uma prioridade.
Falta de
investimento na irrigação
As
infraestruturas de apoio à produção destruídas durante a guerra dos 16 anos
nunca chegaram a ser reabilitadas e tampouco foram pensadas novas formas de
infraestruturas. Isso faz com que o país, por exemplo, aproveite apenas 6% do
seu potencial de irrigação, considerado o nível mais baixo entre os países da
Comunidade para Desenvolvimento da África Austral - SADC. Revelam-se cruciais
investimentos em microssistemas de irrigação, principalmente à gravidade ao
serviço dos camponeses e camponesas, e não os investimentos que estão sendo
feitos pelo governo em grandes regadios que posteriormente são entregues à
gestão privada e assinados contratos de exploração dos referidos hectares,
cabendo aos camponeses se instalarem junto de canais terciários.
Juros
elevados
As taxas de
juros praticadas pelos bancos comerciais acima de 20% são proibitivas ao
campesinato. As taxas praticadas pelas instituições públicas (Fundo de Apoio a
Reabilitação Econômica e o Fundo de Desenvolvimento da Agricultura) oscilam
entre 10% a 15%, sujeitas a garantias. Ou seja, são igualmente inviáveis. O
único financiamento compatível com os camponeses, o Fundo de Desenvolvimento
Distrital (FDD) foi politizado, o que exclui o grosso número de camponeses.
Neste campo penso que o papel do estado em criação de créditos realísticos e
bonificados é crucial, ao mesmo tempo que as iniciativas de economia social
solidária promovidas pelos movimentos do campo têm jogado um papel central.
Associado às
questões já arroladas, penso que o país precisa desenvolver políticas endógenas
de apoio à comercialização agrícola. Necessita de mais infraestruturas
associadas ao impulso de atividades produtivas. É fundamental, ainda, a adoção
de programas sociais visando à criação de mercados formais institucionais,
tendo em vista o alcance da soberania alimentar.
Por João
Vitor Santos
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/540299-a-recolonizacao-de-mocambique-pelas-maos-do-agronegocio-entrevista-especial-com-vicente-adriano
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