Tramita na
Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 8.058/2014, do deputado federal Paulo
Teixeira (PT-SP), que visa instituir
processo especial para controle e intervenção em políticas públicas pelo
Judiciário. O projeto surgiu da
necessidade de se regulamentar fenômeno recorrente na prática — a intervenção
do Judiciário em políticas públicas —, que até então tem se desenvolvido no
país sem qualquer referencial normativo, o que resulta em indesejadas decisões
com caráter particularista, inexequíveis ou descoladas da realidade.
O Judiciário brasileiro, há muito tempo, deixou
de cumprir apenas a função que tradicionalmente lhe é atribuída — resolver com
justiça litígios individuais de caráter patrimonial — para assumir também um
papel de destaque no cenário político, assegurando, diante da inércia e da
ineficácia de atuação dos outros poderes estatais, a efetivação de direitos e
de garantias fundamentais previstos na Constituição de 1988.
Ocorre que,
até então, não obstante o esforço da doutrina e da jurisprudência neste
sentido, tal atividade tem sido desenvolvida pelo Judiciário sem a existência
de balizas legais precisas a orientar a conduta dos magistrados postos diante
da necessidade de decidir questões cujos reflexos, por diversas vias, atingem a
toda a sociedade (como sistemas escolares, estabelecimentos carcerários,
instituições e organismos destinados à saúde pública, acesso ao transporte,
moradia, saneamento, mobilidade urbana etc.). Derivam daí os litígios de
interesse público, desenvolvidos a partir da década de 50 do século passado no
direito norte-americano. Amplamente
conhecido é o emblemático caso “Brown vs. Board Education of Topeka”, conduzido
pela Corte Warren, juntamente com outros precedentes que permitiram o
desenvolvimento da doutrina. Mauro Cappelletti foi o grande propulsor dessas
idéias, em 1976.[1] E entre nós, mostrando as transformações apontadas por
Chayes,[2] manifestou-se Fábio Konder Comparato sobre as características da
chamada public law litigation.[3] Como se vê, as ideias do PL que institui o
controle jurisdicional de políticas públicas nada têm de só jabuticaba ou
tupiniquim, bem ao contrário do que pensam os desavisados críticos. Elas são
reflexos da experiência norte-americana, bem como de outros países, como África
do Sul, Índia, Colômbia e Argentina, apenas para citar alguns. No curso de
pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, discute-se
o tema há mais de dez anos. Portanto, nada de novo, nada de exclusivamente
nacional.
Contra tal
iniciativa legislativa, insurgiram-se, contudo, em artigo publicado no
Consultor Jurídico em 10 de fevereiro de 2015, Lenio Luiz Streck e Martonio
Mont’Alverne Barreto Lima.[4] Segundo eles, o Projeto de Lei não só conteria inconstitucionalidades, como também,
se aprovado, permitiria que o Judiciário se sobrepujasse aos demais poderes
estatais, o que os levou, portanto, a bradar pelo arquivamento do projeto.
Tirante o
sarcasmo presente em grande parte da crítica, que em nada contribui para o
debate de ideias e para o consequente aprimoramento da administração da justiça
em nosso país (Por que tanta perseguição à jabuticaba? O que é típico do nosso
país por si só não é bom?) e antes revela uma compreensão bem equivocada do
tema, decorrente, por certo, do desconhecimento da matéria e de uma leitura
apressada do texto projetado, as objeções suscitadas por tais autores ao
mencionado Projeto de Lei não subsistem a uma análise mais acurada.
Afirmam os
autores, por exemplo, que “se aprovado o PL 8.058/2014 o Judiciário deixará de
ser somente Judiciário. Executivo e Legislativo estão destinados a desaparecer
diante da competência do Poder Judiciário. Basta que se leia os artigos
iniciais do mencionado PL. Coisa bem ‘jabuticaba’, como poderão perceber. Já de
pronto, o artigo 2º afirma que o controle das políticas públicas reger-se-á
pelos princípios da proporcionalidade, razoabilidade, garantia do mínimo
existencial, justiça social atendimento ao bem comum, universalidade das
políticas públicas e equilíbrio orçamentário. Que todos estes ‘princípios’
(sic) já estão na Constituição e nas Leis, não é surpresa. Que todos estes já
são, infelizmente usados como bem entende qualquer juízo, também não traz nada
de novo, infelizmente”.
Em primeiro
lugar, é preciso esclarecer que o Projeto de Lei não atribui qualquer competência
ao Judiciário que a Constituição já não o tenha feito. É, aliás, da própria
Constituição Federal, no artigo 5, parágrafo 1º — de acordo com o qual, as
normas que estatuem direitos fundamentais têm aplicação imediata —, que decorre
a legitimidade do Judiciário para atuar nos casos em que a inércia dos outros
poderes estatais impede a satisfação de determinado direito fundamental.
Trata-se simplesmente do exercício do controle da constitucionalidade, pelo
qual o Judiciário é chamado – sempre a posteriori – para verificar se a
ausência de uma política pública ou se a política pública criada e implementada
pelo Legislativo ou pelo Executivo fere os direitos fundamentais ou não é
adequada.
O que faz o
Projeto de Lei, em realidade, em sentido contrário ao afirmado pelos referidos
autores, é procurar limitar o subjetivismo judicial na tomada de decisões que
determinam a implementação de uma certa política pública pela regulamentação
que estimula o diálogo e a cooperação institucional entre os poderes estatais
ao longo de todas as fases do processo.
A criticada
positivação de princípios no artigo 2º, do Projeto de Lei, como o da
proporcionalidade, razoabilidade, garantia do mínimo existencial, ademais,
também cumpre a função de limitar o subjetivismo judicial. Tais princípios, se
bem compreendidos, limitam as hipóteses em que a intervenção do Judiciário se
justifica. Assim, por exemplo, “por meio da utilização de regras de
proporcionalidade e razoabilidade, o juiz analisará a situação em concreto e
dirá se o legislador ou o administrador público pautou sua conduta de acordo
com os interesses maiores do indivíduo ou da coletividade, estabelecidos pela
Constituição. E assim estará apreciando, pelo lado do autor, a razoabilidade da
pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público. E, por parte do
Poder Público, a escolha do agente público deve ter sido desarrazoada (...) a
intervenção judicial nas políticas públicas só poderá ocorrer em situações em
que ficar demonstrada a irrazoabilidade do ato discricionário praticado pelo
Poder Público, devendo o juiz pautar sua análise em atenção ao princípio da
proporcionalidade”.[5]
A
regulamentação levada a cabo pelo PL, a propósito, em nada desmerece os demais
poderes estatais como querem fazer crer mencionados autores (“Pois parece que o
ilustre deputado Paulo Teixeira, em vez de combater o ativismo, resolveu
regulamentá-lo. Ou seja, já que não podemos solucionar um problema, melhor é
institucionalizá-lo.”). Não incumbe ao Legislativo “combater” o ativismo
judicial, pois essa é uma tarefa irrealizável. Não se pode exigir do
Legislativo que ele anteveja e, portanto, discipline todas as situações que
podem por ventura ensejar a intervenção justificada do Judiciário na
implementação de uma determinada política pública. O que pode, e o que deve
fazer, o Legislativo é estabelecer parâmetros de conduta aos magistrados que se
deparam com a necessidade de julgar causas dessa natureza. Trata-se de um modo
de legislar moderno e consentâneo com as características da atual sociedade.
O novo
processo que se está a instituir para disciplinar o controle jurisdicional de
políticas públicas, se aprovado o Projeto de Lei, portanto, é marcado pelo
incentivo ao diálogo e à cooperação institucional e pela flexibilidade de seu
procedimento. Uma das principais causas de atritos entre os poderes estatais
decorre da falta ou da dificuldade de comunicação entre eles a respeito das
expectativas e das limitações de cada um no que condiz à implementação de uma
determinada política pública. Não são raras as vezes em que o Judiciário, por
exemplo, determina a realização de certa medida visando à satisfação de um
certo direito fundamental sem nem sequer conhecer as limitações orçamentárias
do Poder Executivo para tanto. Como efeito disso, a determinação judicial se
torna ineficaz e o Judiciário perde legitimidade.
Por isso, de
acordo com a nova lei, uma das primeiras providências a ser tomada pelo juiz
antes de tomar qualquer decisão será a de notificar a autoridade responsável
pela implementação da política pública em questão para que sejam apresentadas,
por exemplo, informações sobre a existência de recursos financeiros previstos
em seu orçamento para a implementação dessa política, ou então, a respeito do
cronograma necessário a sua implementação (artigo 6º do PL). A formação do
convencimento judicial, assim, se dará de maneira mais adequada, sem se
descolar da realidade que envolve a implementação de uma política pública. Para
melhor formação de seu convencimento, o magistrado poderá ainda designar a
realização de audiências públicas que contarão com a participação de
representantes da sociedade civil e de instituições e órgãos especializados
(art. 10 do PL), conforme o artigo 10 do PL. Em tal ocasião, o magistrado terá
possibilidade, por exemplo, de tomar conhecimento do que pensa a opinião
pública a respeito da política pública em questão e será informado dos impactos
que a sua decisão acarretará. Não fossem previsões dessa natureza, o que
teríamos são aquelas decisões de gabinete em que o magistrado deve formar sua
convicção a respeito de tema tão controverso e interdisciplinar tão somente a
partir de duas visões diametralmente opostas. (As faculdades de direito não
precisarão formar “bacharéis-versados-em-‘políticas públicas’”, como temem os
autores, mas pobre do curso jurídico que em pleno século XXI não forneça aos
seus estudantes uma visão interdisciplinar dos fenômenos sociais)
Da mesma
forma, no ato de julgar, para assegurar a eficácia de sua decisão, o juiz
poderá determinar ao ente público responsável a apresentação de um planejamento
necessário à implementação da política pública em questão, o qual será objeto
de debate entre o juiz, o ente público e os demais representantes da sociedade
civil. A execução dessas decisões, portanto, se dará de maneira dialogal e
colaborativa, o que tende a torná-la mais eficaz sem que o Judiciário se
substitua ao administrador público. O juiz poderá, por exemplo, de acordo com o
artigo 20, do PL, de ofício ou a requerimento das partes, alterar a decisão na
hipótese de o ente público promover políticas públicas que se afigurem mais
adequadas do que as determinadas em sua decisão. Por isso, é de se perguntar:
que autoritarismo judicial é esse visualizado e tão temido pelos dois autores
que criticaram o projeto? Além disso, em prol de sua efetividade, a decisão
também poderá determinar ao Poder Público que inclua verbas no orçamento do ano
em curso ou do ano futuro, com a obrigação de que elas sejam efetivamente
aplicadas na implementação ou correção da política pública requerida.
De acordo
com os dois críticos tal dispositivo seria inconstitucional: “de que modo
podemos imaginar que uma autoridade pública poderá informar um juiz a
possibilidade de ‘transposição de verbas’, cujos orçamentos foram aprovados por
leis complementares e leis ordinários do Poder Legislativo? Como imaginar que
uma decisão judicial altere estas leis no mesmo orçamento ou imponha
determinações financeiras de gastos a orçamentos futuros os quais não constam
das leis de diretrizes orçamentárias e planos plurianuais a que estão obrigados
todos os Entes da Federação?”. A resposta a essas questões é simples: a
implementação de uma política pública depende, em primeiro lugar, de
disponibilidade financeira — a chamada reserva do possível. E a justificativa
mais usual da administração para a omissão reside exatamente no argumento de
que inexistem verbas para implementá-la (...). O Judiciário, em face da
insuficiência de recursos e de falta de previsão orçamentária, devidamente
comprovadas, determinará ao Poder Público que faça constar da próxima proposta
orçamentária a verba necessária a implementação da política pública. E, como a
lei orçamentária não é vinculante, permitindo transposição de verbas, o
Judiciário também determinará, em caso de descumprimento do orçamento, a
obrigação de fazer consistente na implementação de determinada política pública
(...) Para tanto, o parágrafo 5 do artigo 461, CPC, servirá perfeitamente para
atingir o objetivo final almejado. Desse modo, frequentemente a ‘reserva do
possível’ pode levar o Judiciário à condenação da Administração a duas
obrigações de fazer a inclusão no orçamento da verba necessária ao adimplemento
da obrigação; e à obrigação de aplicar a verba para o adimplemento da
obrigação”.[6]
Também não
encontra correspondência com a realidade a crítica que os mencionados autores
tecem a uma suposta ausência de visão do Projeto de Lei para a natureza
essencialmente coletiva dos direitos envolvidos com a implementação de
políticas públicas: “a quase unanimidade dos intelectuais da área de saúde
coletiva, por exemplo, condenam fortemente o conhecido fenômeno da
‘judicialização da saúde pública’, com decisões individuais a desorganizarem
qualquer planejamento orçamentário e, principalmente a conceber o direito à
saúde ou à educação como individuais e não coletivos. Para além dos aspectos
constitucionais, O PL 8.058/2014 simplesmente ignora este acúmulo histórico
vivido pela área de saúde pública, remetendo o poder de decisão sobre tão
importante política para juízes os quais não são formados para tal”. Ao
contrário do afirmado, o PL em nenhum momento ignora a natureza coletiva desses
direitos, tanto que é coletivo o processo nele disciplinado, mas com
caraterísticas especiais já mencionadas (conforme artigo 1º, parágrafo único,
incisos I a XI, do Projeto de Lei), que o diferenciam do processo coletivo hoje
existente. No artigo 1º, entre os
princípios que o regem, estão destacados o do “atendimento ao bem comum” e o da
“universalidade das políticas públicas”, que tornam induvidosa a característica
de processo coletivo. O processo
individual está disciplinado apenas nos artigos 27 a 29. Todos os demais dispositivos são pertinentes
ao novo processo coletivo. Além do mais,
o projeto prevê a reunião de processos semelhantes para julgamento conjunto, de
modo que a decisão a ser prolatada seja equitativa e exequível, como prevê os
artigos 23 e 25 do PL), e ainda determina, em seu artigo 28, que “na hipótese
de ações que objetivem a tutela de direitos subjetivos individuais cuja solução
possa interferir nas políticas públicas de determinado setor, o juiz somente
poderá conceder a tutela na hipótese de se tratar do mínimo existencial ou bem
da vida assegurado em norma constitucional de forma completa e acabada, nos
termos do disposto no parágrafo 1º do artigo 7, e se houver razoabilidade do
pedido e irrazoabilidade da conduta da Administração”. Para adequada tutela dos
direitos coletivos, no artigo 30, do Projeto, há também a previsão de hipóteses
que autorizam a conversão da ação individual em coletiva.
Por tudo
isso, diferentemente daqueles que bradam pelo arquivamento de tão importante
Projeto de Lei, não temos receio de defender a sua aprovação. Afinal, com a aprovação dessa lei, a ser levada a cabo na
Câmara dos Deputados, e com a entrada em vigor do Novo Código de Processo
Civil, o Judiciário brasileiro passará a dispor de um instrumental que o
tornará mais apto a cumprir a missão que lhe foi outorgada pela Constituição.
([1]). Cappelletti, Mauro, Vindicating the Public
Interest Through the Courts: A Comparativists’ Contribution, 25 Buffalo L,
Rev., 643, 1976.
([2]) . Chayes, Abram, The role of the judge in Public
Law Litigation, H.
([3]).
Comparato, Fábio Konder, Novas funções judiciais no Estado Moderno, Doutrinas
Essenciais de Direito Constitucional, São Paulo, RT, vol 4, maio de 2011, p.
720. Eis as características do novo processo, magistralmente traçadas pelo
mestre: “Observou-se, assim, que a sua estrutura diferia do processo
tradicional em vários pontos. Os autores não litigam por interesse próprio, mas
agem sem mandato na defesa de interesses coletivos. O objetivo da demanda não é
resolver um litígio composto de fatos já acontecidos, mas editar normas de
conduta para guiar o comportamento do réu no futuro. O provimento judicial não
é necessariamente imposto, mas com frequência negociado entre as partes. O juiz
não decide questões de direito sobre a interpretação de normas jurídicas, mas
soluciona problemas de natureza econômica ou social, com o auxílio dos mais
diferentes expertos, para criar normas gerais a partir dos fatos presentes e da
evolução previsível”.
([4]). Ver:
“Lei das Políticas Públicas é ‘Estado Social a golpe de caneta?’”. O texto na
íntegra pode ser acessado por meio do seguinte endereço eletrônico:
(http://www.conjur.com.br/2015-fev-10/lei-politicas-publicas-estado-social-golpe-caneta).
([5]). Ver:
Ada Pellegrini Grinover, O controle jurisdicional de políticas públicas, in. O
Controle Jurisdicional de Políticas Públicas (orgs. Ada Pellegrini Grinover e
Kazuo Watanabe), Rio de Janeiro: Forense, 2011, pp. 125-150, esp. pp. 137-138.
([6]). Ver:
Ada Pellegrini Grinover, O controle jurisdicional de políticas públicas, in. O
Controle Jurisdicional de Políticas Públicas (orgs. Ada Pellegrini Grinover e
Kazuo Watanabe), Rio de Janeiro: Forense, 2011, pp. 125-150, esp. p. 138.
Fonte: http://www.conjur.com.br/2015-fev-23/pl-controle-jurisdicional-politica-publica-constitucional
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