Para Ricardo
Antunes, apesar dos avanços na formalização do trabalho e no aumento do salário
mínimo, o Partido dos Trabalhadores permitiu o enriquecimento de inúmeros
setores privados
Por: Por
Ricardo Machado | Colaborou: Cesar Sanson
O entusiasmo econômico e desenvolvimentista
expresso em planilhas e levantamentos sobre as taxas de desemprego no país,
sustentado pelo governo federal nos últimos três mandatos presidenciais,
contrapõe-se a uma análise mais crítica quando se tem em conta a conjuntura do
trabalho no Brasil. “Naturalmente, sabemos que durante esse período foram criados inúmeros empregos, e, sob este ponto de vista, comparado
ao governo Fernando Henrique Cardoso, não há dúvida de que os governos Lula e
Dilma foram superiores ao anterior. Digo que no conjunto é negativo,
porque o Brasil não sofreu mudanças estruturais no que concerne
ao trabalho”, analisa Ricardo Antunes, em entrevista concedida por
telefone à IHU On-Line. “Aumentaram os
empregos formais, o que também é positivo, mas há uma enorme rotatividade da
força de trabalho no país, aumentou intensamente o trabalho no setor de
serviços, dando nascimento a um novo proletariado precarizado. Trata-se de um emprego em que a precarização é a
constante”, complementa.
Ao fazer um
balanço do mundo do trabalho nestes quase 12 anos de governo do PT à frente do
Executivo federal, Ricardo Antunes considera que, no geral, a média
é negativa. “O triste e
recente episódio do enriquecimento de inúmeros setores envolvidos na Copa da
Fifa e o monumental descontentamento
popular da juventude, deste novo precariado não industrial mas de serviços,
desta juventude que pega trem, ônibus e sai da periferia para trabalhar na
cidade, demonstra contrariedade a esse processo, o que, por certo, não permite
que meu balanço seja positivo”, avalia. “Isto é, o governo Lula foi uma surpresa muito bem-sucedida para os grandes
capitais. Por isso, vários dos setores querem a volta dele, e não é por acaso
que Delfim Neto vive elogiando o governo”, frisa.
Ricardo
Antunes possui mestrado e doutorado em Ciências Sociais, respectivamente pela
Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e pela Universidade de São Paulo -
USP. Realizou pós-doutorado na University of Sussex, no Reino Unido, e obteve o
título de Livre Docência pela Unicamp, onde atualmente é professor titular de
Sociologia. É organizador de Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil (São
Paulo: Boitempo Editorial, 2006) e de Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil
Vol. II (São Paulo: Boitempo Editorial, 2013) e autor, entre outras obras, de O
continente do labor (São Paulo: Boitempo Editorial, 2011), Adeus ao trabalho?:
ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade no mundo do trabalho (São Paulo:
Cortez, 2010) e Os Sentidos do Trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação
do trabalho (São Paulo: Boitempo Editorial, 1999) — a última, publicada nos
Estados Unidos, Inglaterra, Holanda, Itália, Argentina, Venezuela e Colômbia.
Confira a
entrevista.
IHU On-Line
- Passados quase três mandatos do governo do PT, que em 2014 completa 12 anos
ininterruptos, que balanço é possível de ser feito com relação ao mundo do
trabalho?
Ricardo
Antunes – O balanço, no seu conjunto, é
negativo. Naturalmente, sabemos que durante esse período foram criados
inúmeros empregos, e, sob este ponto de vista, comparado ao governo Fernando
Henrique Cardoso, não há dúvida de que os governos Lula e Dilma
foram superiores ao anterior. Digo que no conjunto é negativo, porque o Brasil não sofreu mudanças estruturais no
que concerne ao trabalho. Por exemplo, aumentaram
os empregos formais, o que também é positivo, mas há uma enorme rotatividade da
força de trabalho no país, aumentou intensamente o trabalho no setor de
serviços, dando nascimento a um novo proletariado precarizado. Trata-se de um
emprego em que a precarização é a constante. A formalização, quando existe,
também é quebrada pela rotatividade ampliada. Reconheço que o governo Lula tomou algumas medidas que
diminuíram o impacto da formalidade, mas é importante lembrar também que, no
final do primeiro mandato, ele foi o responsável por um projeto de reforma
trabalhista, no âmbito sindical, especialmente, que criava uma brecha para que
o negociado se sobrepusesse ao legislado. Portanto, fazendo um olhar de
conjunto, podemos dizer que o governo
Lula foi menos nefasto que o governo de Fernando Henrique Cardoso.
Porém, o que se espera de um governo com assento de esquerda é que ele
enfrente a questão da superexploração do trabalho. O vilipêndio, as
mortes no trabalho, os sofrimentos, as terceirizações, as precarizações, as
rotatividades ampliadas, o emprego supérfluo, isso não foi contentado.
Ao contrário do período anterior, em que houve a prevalência de uma economia
oscilando entre um pequeno crescimento e a recessão, no governo Lula houve um
crescimento econômico, e esse crescimento da economia gerou muitos empregos
como estamos vendo até hoje — ainda que a situação econômica atual seja de
muito mais turbulência que a do início do governo PT. Esta situação não me permite dizer que foi um governo que
trouxe mudanças significativas. Ele aumentou o emprego porque houve crescimento
econômico. É imprescindível lembrar que, ao mesmo tempo que houve uma valorização pequena, mas real, do
salário mínimo — pois a lei do salário mínimo no Brasil é risível para quem
ocupa uma das dez maiores economias do mundo —, os grandes capitais ganharam
muito dinheiro com os governos Lula e Dilma. O triste e recente episódio do
enriquecimento de inúmeros setores envolvidos na Copa da Fifa e o monumental
descontentamento popular da juventude, deste novo precariado não industrial mas
de serviços, desta juventude que pega trem, ônibus e sai da periferia para
trabalhar na cidade, demonstra contrariedade a esse processo, o que, por certo,
não permite que meu balanço seja positivo.
IHU On-Line
- Considerando-se que Lula vem do movimento operário, esperava-se dele
iniciativas mais ousadas?
Ricardo
Antunes – Se olharmos para o passado de
Lula, anos 1970 e 1980, esperávamos atividades um pouco mais corajosas.
Lula foi eleito, em 2002, com uma
votação expressiva e teria condições, em tese, de tomar medidas mais fortes em
defesa do trabalho e de mudanças estruturais. O Brasil se mantém como um país marcado pela insegurança e pela
superexploração do trabalho. Apesar
de a China e outros países da Ásia, a Zona Franca da América Central — Haiti,
República Dominicana — e cidades do México terem níveis de superexploração mais
intensos que os nossos, isso não elimina o fato de que temos intensa exploração
do trabalho. Isto o governo Lula não enfrentou, e não o fez em
razão dos grandes capitais, do agronegócio, da produção de commodities;
mais ainda, o ex-presidente não só abriu
o nosso país a uma transnacionalização da economia, como pegou o empresariado
pela mão — as empreiteiras, por exemplo — e transnacionalizou, permitindo que
essas grandes empresas possam fazer outros trabalhos na América Latina, na
África e em outros continentes. Isto é, o governo Lula foi uma surpresa
muito bem-sucedida para os grandes capitais. Por isso, vários dos setores
querem a volta dele, e não é por acaso que Delfim Neto vive elogiando o governo.
Quando o
Lula e o PT ganharam as eleições em 2002, sabíamos que nem o Lula nem o PT eram
os mesmos e, tampouco, o Brasil era o mesmo. Eles já tinham padecido de um
trágico processo de desertificação neoliberal, que nos atingiu na década de
1990. Inicialmente com Collor e depois
com Fernando Henrique Cardoso.
IHU On-Line
– Onde houve avanços e quais pontos da agenda do trabalho permaneceram como
estavam, ou pior, recuaram?
Ricardo
Antunes – A melhora se deu
fundamentalmente no emprego, que decorre do crescimento da economia e da
relativa contenção do processo de informalização do trabalho. Mas há coisas
negativas. Aumentou enormemente o processo de cooptação das
entidades sindicais pelo governo Lula e depois houve mudanças com a Dilma,
porque ela não tem um centésimo da experiência sindical do Lula — este
foi o grande líder sindical do século XX no Brasil, e que sabia negociar com os
sindicatos como ninguém. Em seu
governo, criou-se uma espécie de sindicalismo negocial de Estado, em que esta
cooptação, esta servidão voluntária não foi por acaso. Lula expandiu uma medida tomada por Getúlio Vargas no final dos anos
1930, estendendo às centrais sindicais o recolhimento de imposto sindical, o
que faz com que algumas centrais sindicais ganhem muito dinheiro do Estado, ao
qual a Central Única dos
Trabalhadores – CUT sempre disse ser contra, mas aceita, recebe e utiliza tais
recursos. Esse é um ponto muito nefasto do
sindicalismo, quer de base, quer das centrais sem autonomia política, sindical
e financeira, pois cria um sindicalismo negocial que depende do Estado, e se
amanhã muda o governo, essa medida cai, o sindicalismo chapa branca vai ficar
sem recursos. Esse foi um ponto muito negativo, sem falar dos aspectos
mais gerais, por suposto, que são decisivos. Lula preservou o superávit primário que marca a política econômica
neoliberal, abriu a produção dos transgênicos, incentivou a produção de
commodities; houve uma espécie de regressão do Brasil à produção da nova
divisão internacional do trabalho, em que aceitamos e nos sujeitamos à produção
de commodities, minérios, etanol e soja.
Evidentemente,
as rebeliões de junho mostraram que a “res-pública” no
Brasil tornou-se uma “res-privada”. Há uma diferença: o tucanato realiza a
privatização selvagem; o PT realiza a privatização branda. Por
exemplo, a Petrobras e sua crise com o pré-sal, os aeroportos. O tom é
diferente, mas no substantivo ambos os governos privatizam. Essa é a triste
realidade e conta como déficit do governo do PT.
IHU On-Line
- O PT surge no movimento sindical. Nesse sentido, de que maneira esses 12 anos
de Lula e Dilma reorganizaram a forma de atuação dos sindicatos? Os movimentos
perderam força de oposição ou seguem firmes na defesa aos trabalhadores?
Ricardo
Antunes – Primeiramente, gostaria de repetir que o
governo Lula conseguiu um complexo processo de cooptação das centrais
sindicais, especialmente a CUT, e também, em um primeiro momento, a Força
Sindical; no entanto, agora com a Dilma, ensaia movimentos de contestação.
Há um problema mais de fundo, que é uma
mudança profunda no mundo do trabalho, uma nova morfologia do trabalho, uma
classe trabalhadora mais jovem em muitos setores, há um novo proletariado no
campo dos serviços que se expande sem parar. Este novo proletariado mais
jovem está muito mais à margem da representação sindical. Por exemplo, enquanto há sindicatos fortes, como dos metalúrgicos e dos bancários,
não há essa força nos call centers, no telemarketing, nos setores de fast food
e supermercados, entre outros. Isto cria uma
dificuldade muito grande, que é um certo descolamento entre o sindicalismo de
uma era na qual imperava o operariado herdeiro da fase taylorista-fordista para
um outro proletariado que não se vê representado na estrutura dura da forma de
organização sindical. Isto ocorre, inclusive, porque muitos destes serviços são terceirizados e
quase a totalidade destes trabalhadores está fora dos marcos da representação
sindical. É um problema complexo que
os sindicatos vão ter que enfrentar, mas não só no Brasil, é um fenômeno que
marca o sindicalismo dessa virada do século XX para o XXI em escala global.
IHU On-Line
– Na opinião do senhor, quem ocupa esse espaço forte de mobilização e pressão
social que antes era exercido pelos sindicatos?
Ricardo
Antunes – São duas alternativas. A primeira vem de um vazio (lembre-se de que
pesquisas apontaram que mais de 70% dos jovens que participaram dos levantes do
Brasil eram de estudantes que trabalham, trabalhadores e jovens que estudam) de
representação, e a rua, como praça pública, tornou-se o espaço cotidiano da
revolta. O segundo espaço que se ampliou foi ante a ausência de
sindicatos e o nascimento de movimentos sociais, que, de certo modo, são muito
mais livres do que a estrutura sindical atrelada ao Estado. Nos anos
1990 e 2000 surgiu uma miríade de movimentos dos sem-teto, barrageiros, pessoas
da periferia, que têm representado a organização não propriamente no espaço de
trabalho, mas dos assalariados. A atuação desses cidadãos oscila entre o vácuo,
a praça pública e os movimentos sociais, o que mostrou a explosão belíssima dos
movimentos sociais do ano passado e que vão voltar agora — porque não pararam
de vez — por ocasião da Copa do Mundo.
IHU On-Line
– Qual o grande desafio do mundo do trabalho no século XXI?
Ricardo
Antunes – O mundo do trabalho é uma
espécie de anatomia da sociedade. O trabalho que estrutura o capital, ou seja,
aquele que é desenvolvido para estruturar tal sistema, desestrutura a humanidade,
o social do trabalho. Portanto, o trabalho, se quiser
reestruturar a vida humana — tendo um ponto de partida para que nós possamos
ter um tempo livre dotado de sentido, com fruição, tudo aquilo que é desejável
e necessário para além do trabalho —, precisa destruir o capital.
Esta é a chave. É por isso que há rebeliões do trabalho em Portugal, na Grécia,
na Espanha, no Leste Europeu e nos países asiáticos. Há importantes greves do
setor automobilístico na Índia, há greves diariamente na China. Li, recentemente, na imprensa que a China
pretende devolver milhões de trabalhadores ao campo, mas eles não têm o que
fazer no campo. Como um jovem que saiu do campo e foi viver nas cidades
chinesas vai aceitar voltar para o campo? Tudo isso faz parte do primeiro
desafio.
O segundo
desafio é que o capitalismo fez com que a precarização, pela via
da informalidade e da terceirização, que são fenômenos aproximados, mas não
idênticos, se tornasse a regra e não a exceção. É preciso, aqui e
agora, impedir esta regra, evitando que a terceirização se
amplie, e mais, lutar pelo fim dela. Nenhum trabalhador em uma
escola ou universidade pública, por exemplo, prefere ver o outro trabalhador
com mais direitos. Temos que impedir que a
terceirização, a precariedade e a informalização sejam a regra. Isso
implica a reorganização dos trabalhadores, para os quais os
sindicatos não são carta fora do baralho. Do século XIX para o XX, o
mundo do capitalismo mudou profundamente. Nasceu e se desenvolveu a grande
indústria, que já era visível na segunda metade do século XIX, e que se
expandiu no século XX com o taylorismo e o fordismo de grande intensidade. Aquele antigo
sindicato do século XIX, herdeiro de um trabalhador dos ofícios, das
manufaturas, se mostrou incapacitado, e surgiu o sindicalismo de massa.
Nós transitamos do século XX para o XXI,
em que esta indústria taylorista-fordista, que se mantém em vários setores, não
é mais a tendência dominante, pois o que é dominante atualmente são as empresas flexibilizadas e
liofilizadas, que nasceram com o toyotismo
no Japão e a chamada acumulação flexível. Este tipo de empresa, que se expandiu pelo
Ocidente, estruturada nas cadeias produtivas globais, sofreu um processo de
desterritorialização e fragmentação, em que uma empresa com mais de 20 mil
trabalhadores está divida em centenas de unidades esparramadas pelo mundo. Isso
cria a necessidade de um novo sindicalismo mais aparentado com
os movimentos sociais, que seja consentâneo com a nova morfologia do trabalho
no século XXI. Não é possível que a humanidade
social que trabalha veja a destruição de seus direitos, construídos ao longo de
séculos, e se renda. Ainda
bem que estamos vendo que a temperatura das manifestações sociais no mundo
inteiro está aumentando continuamente.
Fonte: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5449&secao=441
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