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segunda-feira, 6 de outubro de 2014

A falácia democrática

A tradição liberal é antidemocrática, segundo Jacques Rancière. O objetivo é criar um governo dos educados e iluminados
por Gianni Carta
Ironia das ironias foi o fato de "a direita americana antidemocrática" pretender exportar a democracia durante a invasão do Iraque em 2003, diz o filósofo francês Jacques Rancière a CartaCapital. Em O ódio à democracia, a ser lançado em breve pela Boitempo (128 págs., R$ 29), Rancière, de 74 anos, "rompe" (termo usado com frequência pelo filósofo) vários mitos construídos para inventar aquilo que acreditamos ser uma democracia. De saída, o conceito "pode significar diversas coisas bastante diferentes e contraditórias". E eis outros mitos rompidos: o sufrágio universal e a subsequente representação não são uma forma democrática através dos quais as pessoas exprimem suas preferências políticas. De fato, a alternância entre os partidos Democrata e Republicano nos Estados Unidos, ou entre a direita e os socialistas na França, é apenas uma escolha das minorias. O liberalismo anglo-saxão defendido por essas minorias é antidemocrático, visto que a igualdade, ou pelo menos a possibilidade de igualdade, é um princípio fundamental da democracia.

CartaCapital: O senhor teve problemas com Althusser em maio 1968, porque via uma diferença entre teoria e prática, mas também porque ele acreditava no poder do professor?
Jacques Rancière: Não tive conflitos com Althusser, como um aluno tem com o seu professor. Fiquei impressionado em maio de 1968 com o fato de a insurreição, a greve geral, o movimento ter deixado em total contradição a doutrina de Althusser, a crítica da ideologia, a afirmação do primado da ciência. Althusser havia criticado fortemente seus alunos. Dizia que eram pequenos burgueses. Do ponto de vista de Althusser, a revolta de 1968 não foi nada. No entanto, a revolta causou a maior greve de trabalhadores da história francesa. Passei a interpretar a teoria de Althusser como aquela na qual a ação política dependerá sempre da ciência transmitida por pessoas com a autoridade para fazê-lo. Testemunhei a contradição entre a tese marxista exacerbada e os movimentos reais.
CC: Em Le Maître Ignorant, de 1987, o senhor defende a igualdade das inteligências. Por sua vez, seu livro atual estipula que a igualdade das inteligências depende da vontade e da condição social. Igualdade é um tema central em seu pensamento.
JR: O que disse sobre a igualdade é derivado da minha pesquisa sobre a história da emancipação da classe trabalhadora e, em parte, da ideia de emancipação intelectual, desenvolvida no século XIX por Joseph Jacotot. O ponto central é o seguinte: a igualdade não é um objetivo distante, mas um ponto de partida. E a partir desse ponto de vista a emancipação é uma afirmação de capacidade: aqueles capazes de gerir um ateliê ou empresa podem discutir e deliberar sobre os assuntos da comunidade. Fundamental era dissecar essa inversão de posições. Existem oportunidades para pessoas desiguais, dominadas, para traçar o caminho da autoafirmação.
CC: O senhor é um filósofo por formação, ensina e escreve livros de filosofia. Mas muitos críticos dizem ser impossível categorizá-lo graças ao seu interesse por uma série de temas: política, história, cinema, arte, estética.
JR: De acordo com a igualdade das inteligências, o mesmo indivíduo é capaz de interpretar um texto literário, uma situação política ou um filme. O que digo não tem nada de original. Pertenço à década de 1960, quando houve uma espécie de explosão no campo da filosofia. Michel Foucault, por exemplo, estava completamente fora do âmbito normal da filosofia. Interessou-se por hospitais, asilos, prisões. Se a filosofia tem um papel, é o de romper todas essas identificações e o de destacar uma espécie de capacidade intelectual das pessoas. E assim, colocaremos fim nessa rigidez, nessas divisões entre as disciplinas e competências.
CC: Li que a política lhe interessa a partir da perspectiva da literatura. Se verdade, entendo como Victor Hugo poderia formar uma opinião política. Mas como pode Joseph Conrad inspirá-lo politicamente?
JR: Nunca disse que a política me atrai a partir da literatura. Dito isso, há uma forma de política exclusiva à literatura. E esta forma de política não se limita a visões de mundo, aos engajamentos políticos de escritores ou às suas maneiras de representar a sociedade. Há uma relação entre os dois tipos de democracia, mas elas são diferentes. Por que Conrad? Conrad faz parte de um movimento a envolver escritores como Flaubert, Joyce e Virginia Woolf, entre outros. Quebram uma forma de autoridade que era inerente às estruturas narrativas tradicionais.  Flaubert é um exemplo dessa mudança. Uma camponesa torna-se tão interessante quanto uma grande dama. Sua vida, considerada medíocre e repetitiva, torna-se palco de uma tragédia. Considere o prefácio de O Negro de Narciso (The Nigger of the "Narcissus", de 1897). Eis a possibilidade do herói fictício, mesmo em um sentido negativo. Conrad pertence a essa revolução democrática do romance, embora ele tenha uma posição reacionária: denunciou os anarquistas e os revolucionários. Mas acho isso interessante, porque há uma tensão entre uma democracia específica à forma ficcional e à estética e, ao mesmo tempo, narrativas revolucionárias, ou antidemocráticas, no sentido literário.
CC: O termo democracia "é uma expressão de ódio" desde os tempos da Grécia, quando alguns achavam mais crível o governo da multidão. O ódio continua. A violência ligada ao ódio é novidade. O senhor escreve: "A democracia pode criar a 'coragem, por isso a alegria'". De que forma?
JR: Tentei, em O Ódio, dizer que a democracia não é mera forma de governo ou um sistema igualitário longínquo. Ao contrário, a democracia é, antes de tudo, uma ideia extravagante. Expus a tese de um poder para aqueles isentos de poder e sem títulos ao poder. Escrevi que, paradoxalmente, por causa da falta de poder há política porque há democracia. Há política graças ao poder paradoxal de pessoas que não são nada, não têm qualidades especiais e não possuem títulos. Há democracia nos recentes movimentos: “Primavera Árabe”, “Indignados”, “Occupy” etc. Nesses casos, solidifica-se um poder das pessoas em estado de excesso, que é independente em relação ao poder inteiramente incorporado no Estado. Sublinhei que a democracia não é uma forma de governo, é sempre um poder em estado de excesso em relação à democracia formal, sem a necessidade de ser transformado em um futuro remoto a ser obtido após uma revolução a se distanciar. Portanto, a democracia real é uma forma de ação, não apenas o futuro de uma igualdade econômica compartilhada. Quando falo de democracia real, em tensão com as chamadas instituições democráticas, falo sobre coragem e alegria porque tentamos inventar formas de partilha de poder, como as inteligências iguais.
CC: O senhor faz um esboço um pouco zombeteiro do homem em busca da justiça global: são jovens consumidores, imbecilizados depois de comer muita pipoca diante de programas de reality shows. E isso sem contar suas ilusões anticapitalistas.
JR: Esse é o esboço traçado pelos antidemocratas, como o filósofo Alain Finkielkraut na França. O objetivo é reduzir novos movimentos sociais a jovens exaltados que sabem ler, mas são incapazes de julgar os fatos políticos. Isso não significa que eu ache todos esses movimentos positivos. Por exemplo, no movimento ecológico há uma mistura de poder a todos e, ao mesmo tempo, o poder da ciência. Vimos novas formas de afirmação igualitárias, mas ao mesmo tempo certas perguntas não encontram respostas. “O que vamos fazer depois de suas ocupações?” Há contradições, mas movimentos interessantes trazem contradições.
CC: A associação que fazemos entre democracia e capitalismo remonta aos Pais Fundadores nos Estados Unidos?
JR: A tradição liberal é antidemocrática. Os Pais Fundadores não fundaram a democracia porque redigiram uma Constituição para limitar o poder do povo. Queriam era garantir o poder a todos, em princípio. Mas o poder iria para os esclarecidos, educados. E em suas mentes, é claro, iluminados e educados eram proprietários capazes de administrar suas propriedades e, portanto, também capazes de pensar sobre o papel da propriedade no centro da sociedade. O projeto era precisamente submeter a democracia, isto é, o poder de todos, e assim criar um governo da elite, dos ricos, e seus intelectuais. E chamamos esse tipo de governo de democracia, eis o problema.
CC: O senhor pleiteia que "não vivemos em democracias", mas em Estados de Direito oligárquico. Eleições e representação são mitos. Mas, e se a esquerda da esquerda ganha aqui na França ou em outro lugar?
JR: A esquerda da esquerda é um conceito um tanto ambíguo. Existe uma classe de políticos que tomou o poder. De direita ou esquerda, eles têm programas que não são feitos por eles. São impostos pelas instituições financeiras supranacionais e/ou internacionais. Há grupos marginais, mas geralmente não tentam minar a própria estrutura à qual a democracia é submetida. Não consideram a questão do que é uma verdadeira democracia para o povo.
CC: Como o senhor vê a ascensão da extrema-direita na Europa?
JR: É uma reação à tomada do poder por uma pequena minoria. O Frente Nacional, na França, sempre se posicionou contra um sistema que tinha duas legendas a compartilhar o poder indefinidamente, e a empurrar o povo para fora do sistema. É um erro, creio, explicar o sucesso da extrema-direita apenas à ascensão do racismo e da xenofobia. Isso a despeito do fato de que parte da extrema-direita é abastecida por esses temas. Mas o sucesso do Frente Nacional tem outras fontes, como o déficit real da democracia, e ao fato de a direita e a esquerda fazerem a mesma política. Tudo isso criou um espaço, agora ocupado pela extrema-direita. A ascensão da extrema-direita também está ligada ao fracasso histórico do marxismo. A esquerda perdeu credibilidade.
CC: A extrema-direita ganhou muitos votos por se opor aos imigrantes. O senhor cita Hannah Arendt e Burke. Esses pensadores dizem que "os direitos humanos são vazios e tautológicos", visto que o homem sem classe social não tem direitos. São os casos dos africanos e árabes que chegam à Europa. A questão se torna ainda mais complicada com a globalização.
JR: Existe uma desordem no mundo relacionada ao realpolitik. É liderada pelas grandes potências há mais de meio século. Deixo de lado o caso do mundo islâmico, outro vasto tema. No mundo ocidental, em sentido amplo, há contradições entre a restrição da livre circulação de pessoas, mas não há entraves para a livre circulação de mercadorias. Portanto, estamos em um mundo onde há grandes áreas sem perspectivas. Por isso, uma massa de pessoas é impulsionada pela atual distribuição de riqueza a tentar ir onde está o capital. O motivo: é lá onde existe a possibilidade de encontrar trabalho. E o Ocidente acha que deve filtrá-los. Eles devem ser mandados de volta para suas casas. Existem outros dois tipos de problemas. Os imigrantes bloqueados e aqueles já instalados nos nossos países. Eles têm um status inferior, são relegados às margens da sociedade. E, de fato, há a questão dos direitos humanos. Há um movimento democrático que poderia ser colocado a serviço dessas populações colocadas às margens do sistema. Porém, mesmo essa ação democrática foi traída pelas organizações e pelos partidos oficiais. O resultado é que temos agora esse lado violento nos subúrbios, como vimos há dez anos na França. E há esse sentimento de mal-estar que habita os imigrantes e os ocidentais a conviver com eles.
CC: Muitos dos críticos da democracia nos EUA eram a favor da invasão. É um paradoxo, não?
JR: Essa confusão é o resultado do fato de a democracia poder significar coisas extremamente diferentes e contraditórias. A direita americana pensou que a democracia era boa para os iraquianos: a democracia no Iraque seria como aquela no Ocidente. Mas como a antidemocrática direita americana pode exportar a democracia? Obviamente, eles estavam completamente errados. Não há paradoxo porque a própria ideia que os americanos tinham de democracia foi instrutivo. É Isso que emerge da famosa declaração de Donald Rumsfeld diante dos saques após a queda de Saddam: a liberdade é uma bagunça, é anarquia.
Leia a entrevista em francês na Carta Capital.

Fonte: http://www.cartacapital.com.br/revista/819/a-falacia-democratica-198.html

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