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sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Uma escola de torturadores nas Américas

“Pode ser um desgraçado, mas é nosso desgraçado”, teria dito Franklin D. Roosevelt sobre o ditador nicaraguense Anastazio Somoza. A fim de facilitar o recrutamento de perfis desse tipo na América Latina, o exército norte-americano logo imaginou uma escola não exatamente como as outras.
por Bernard Cassen
A região do Canal do Panamá não abriga apenas uma via de água transoceânica de importância vital para os Estados Unidos e o conjunto do hemisfério. É também uma verdadeira sucursal do Pentágono. Claro, o tratado de 1903 previa a presença armada dos Estados Unidos, visando “proteger” as instalações do canal. Mas, na verdade, a zona se transformou em sede da defesa hemisférica dos Estados Unidos, em base de intervenção nos negócios políticos dos países da América Latina e, por fim, em centro de formação militar de seus exércitos, principalmente através da espantosa instituição que é a Escola das Américas (Escuela de las Américas), por onde passaram todos os militares de alta patente dos exércitos da quase totalidade dos países da região.

Se o nome oficial da escola está formulado em espanhol, não é por respeito ao folclore do Panamá. Trata-se de uma política de hispanização deliberada, já que, depois de 1956, os cursos passaram a ser realizados exclusivamente em espanhol. Ligada à 193ªBrigada de Infantaria do Exército e fundada em 1946 como “Centro de Treinamento Latino-Americano”, ela recebeu seu nome atual em 1963, para refletir sua “vocação” hemisférica.
Enclave dos Estados Unidos
Toda a região do canal contrasta com o resto do Panamá. Os diversos veículos militares, as igrejas protestantes com todas as denominações, os gramados cuidadosamente podados, as lojas intituladas “Shoe Store”, “Home Furnishing Store”, as agências da Chase Manhattan e do First National City Bank: estamos sem dúvida num enclave norte-americano. Apenas a arquitetura dos quartéis e de outros prédios oficiais (datando em geral de muitas décadas) lembra a situação geográfica local. Antes de chegar ao prédio central, atravessamos loteamentos compostos de espaçosas casas térreas onde estão alojados os oficiais norte-americanos; seu nome e patente aparecem indicados na fachada. O capitão Chalmers, que nos recebeu em nome do coronel Bauer, comandante da escola em viagem à Nicarágua, tem mais o tipo de um intelectual do que de um aventureiro. Faz pensar no “americano tranquilo”, de Graham Greene. Ele nos anuncia de imediato que estamos em casa, que a escola não tem segredos. As horríveis histórias de cursos de tortura divulgadas principalmente pelo canal de televisão norte-americano CBS? Mentiras. Não, essa escola, por onde passaram mais de 33 mil militares latino-americanos, não é realmente um centro de formação da contraguerrilha. O catálogo de cursos que nos é amavelmente fornecido informa de maneira bem vaga que a missão do estabelecimento é oferecer “cursos fundamentais de formação profissional que se concentram nas aptidões críticas que geralmente são padrão na América Latina”.
Contraguerrilha
Esse documento, destinado aos assessores militares das embaixadas dos Estados Unidos e aos governos latino-americanos inscritos no programa de assistência militar, lembra uma brochura publicitária de venda por correspondência: os chefes do estado-maior estrangeiros podem escolher para os oficiais, suboficiais ou soldados que enviam à escola entre 37 cursos diferentes com duração variável (de 3 a 42 semanas). O produto final é garantido: “Você pode ter certeza de que antes que um estudante receba seu diploma ele deverá demonstrar aptidão em atingir os objetivos da instrução. Somos uma boa instituição e seremos ainda melhores”. Os países “clientes” (o termo aparece diversas vezes) podem até fazer sugestões, que serão levadas em consideração.
No plano “pedagógico”, a escola se divide em três departamentos: o de operações técnicas; o de operações de combate, onde se estudam a “formação em matéria de informações” e a “ação cívica”; e o de comando, no qual os alunos são principalmente formados em “defesa interna”. Mas o que cobre esse último conceito, perguntamos ao capitão. “Trata-se de dar aos países meios para combater a guerrilha. No passado, dávamos cursos de contraguerrilha urbana, mas não fazemos mais isso por causa da emenda Harrington.1 Tivemos de suprimir nossos cursos de polícia militar, que eram muito populares.” Simples questão de terminologia, pois o curso (táticas e técnicas de infantaria) “dá uma grande importância à ação cívica militar, às operações psicológicas, às táticas e aos conceitos das operações de contraguerrilha urbana e rural e às técnicas de informação militar”. O curso OE-8 (operações na selva), de três semanas, enfatiza sobretudo “as operações táticas defensivas e ofensivas de contraguerrilha”.
Inimigo interno
Para as autoridades da escola, não se trata de formar a elite dos oficiais da América Latina na defesa de suas fronteiras, mas na luta contra o “inimigo interno”. O capitão Chalmers tem um pouco de dificuldade em admitir a conclusão que submetemos a ele, mas confirma que entre militares de diversos países existe um grande sentimento de camaradagem e que alguns oficiais chegaram a “acertar por telefone, do Panamá, problemas que existiam entre seus respectivos países. Nós temos, inclusive, entre nossos antigos alunos, homens que ocupam hoje posições importantes, como o general Torrijos, o general Somoza, o general Pinochet...”.2
A escola oferece uma formação ideológica? “Não”, ele nos responde. “Claro, no nosso curso de estado-maior, os estudantes podem discutir política, do sistema comunista ao sistema democrático. Nós apenas lhes apresentamos as doutrinas.” Citamos alguns exemplos de “veteranos” que se desviaram – pelo fato, sem dúvida, de terem assimilado bem o curso dado sobre democracia – e perguntamos: “O senhor considera os generais Pinochet e Somoza maus alunos?”. Sem hesitar, a resposta vem: “Não, pois não procuramos influenciá-los”. Ao percorrermos os corredores, ficamos boquiabertos diante dos painéis cobertos de fotos acompanhadas de legendas. Uma era destinada a sensibilizar os oficiais com as técnicas de infiltração. Uma foto mostrava um prisioneiro sentado diante de um oficial que o questionava. A atmosfera parecia mais uma conversa de botequim do que um interrogatório “físico”. A legenda, no entanto, deixa pairar dúvidas: “Interrogar os prisioneiros e os suspeitos para obter informações de valor, combinando este com outros métodos”.
Redes de solidariedade
De 1946 a 1976, 33.400 alunos frequentaram a escola. Em 1975, os efetivos totais foram de 1.775. São os países pequenos ou médios que têm o maior número de ex-alunos: 4.316 da Nicarágua, 3.060 da Bolívia, 3.016 da Venezuela, 3.005 do Panamá, 2.469 do Equador etc. Os grandes foram piores “clientes”: México (254), Brasil (346), Argentina (601). O corpo docente da escola também é multinacional. Em 1975, foram convidados, como “professores”, 22 oficiais e 20 suboficiais de 15 países, que instruíram os alunos ao lado de seus 45 a 50 “colegas” norte-americanos. Se, atualmente, não há mais instrutores mexicanos e costarriquenhos nem alunos vindos desses países, por outro lado o Brasil enviou oito “professores” (num total de 47 estrangeiros).
Assim, percebemos melhor a dupla razão de ser da Escola das Américas. Não se trata apenas de oferecer uma formação técnica para lutar contra os movimentos populares, única missão designada aos exércitos do hemisfério desde a época de Kennedy-McNamara. Convém também criar redes de solidariedade, de relações pessoais, entre oficiais norte-americanos e latino-americanos. Os brasileiros provavelmente só participam da elaboração dos cursos para estabelecer esse tipo de contato e garantir sua entrada nos exércitos dos outros países.
Ligações com o império
Nenhum esforço é medido para criar ligações estreitas com a metrópole imperial: viagens aos Estados Unidos, convites informais às casas dos instrutores norte-americanos etc. Imaginamos o impressionante arquivo que o Pentágono deve possuir sobre os oficiais “promissores” em cada um dos exércitos latino-americanos. As semanas de formação permitem observar de perto os talentos e as reações, eventualmente as fraquezas, de cada um. Uma vez diplomados, os alunos permanecem unidos à escola, quer dizer, a Washington, pelo sentimento de grupo − o pertencimento comum a esse clube relativamente fechado. Ninguém duvida que a CIA, garimpando nesse rico viveiro, não encontre material que “interesse” aos oficiais para futuras “desestabilizações”. Os US$ 5 milhões de orçamento anual da escola constituiriam assim um excelente investimento político.
No corredor de honra que leva à sala de reuniões e onde cada país-membro é representado por sua bandeira nacional, uma carta fica destacada, abaixo de um brasão de cobre. Endereçada ao comandante da escola, ela termina assim: “Pedimos consequentemente que aceite o reconhecimento do exército chileno, ao qual eu acrescento minhas sinceras felicitações pela obra de aproximação profissional que esse instituto realiza”. Ela data de 6 de novembro de 1973 e é assinada por Augusto Pinochet.
Bernard Cassen é jornalista, ex-diretor geral de Le Monde Diplomatique e presidente de honra da Atacc França.
Ilustração: Daniel Kondo
1. Emenda do representante Michael Harrington à lei sobre a ajuda ao estrangeiro (Foreign Assistance Act) de 1975, que proíbe a utilização de fundos públicos para o ensino de disciplinas que tratem da polícia nas escolas militares.
2. Na chefia de regimes ditatoriais respectivamente no Panamá (de 1968 a 1981), Nicarágua (de 1967 a 1972 e de 1974 a 1979) e Chile (de 1973 a 1990).
04 de Julho de 2012
Palavras chave: EUA, Estados Unidos, direitos humanos, política, América Latina, Panamá, guerrilha, tortura, império, exército, Pinochet, interrogatórios, violência

Fonte: http://www.diplomatique.org.br/edicoes_especiais_artigo.php?id=122

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