“Pode ser
um desgraçado, mas é nosso desgraçado”, teria dito Franklin D. Roosevelt sobre
o ditador nicaraguense Anastazio Somoza. A fim de facilitar o recrutamento de
perfis desse tipo na América Latina, o exército
norte-americano logo imaginou uma escola não exatamente como as outras.
por
Bernard Cassen
A região
do Canal do Panamá não abriga apenas
uma via de água transoceânica de importância vital para os Estados Unidos e o
conjunto do hemisfério. É também uma verdadeira
sucursal do Pentágono. Claro, o tratado
de 1903 previa a presença armada dos Estados Unidos, visando “proteger” as
instalações do canal. Mas, na verdade, a zona se transformou em sede da defesa hemisférica dos Estados Unidos,
em base de intervenção nos negócios
políticos dos países da América Latina e,
por fim, em centro de formação militar de seus exércitos, principalmente
através da espantosa instituição que é a Escola das Américas (Escuela de las Américas), por onde passaram todos os militares de alta
patente dos exércitos da quase totalidade dos países da região.
Se o nome oficial da escola está formulado em
espanhol, não é por respeito ao folclore do Panamá. Trata-se de uma política de
hispanização deliberada, já que, depois de 1956, os cursos passaram a ser
realizados exclusivamente em espanhol. Ligada à 193ªBrigada de Infantaria do
Exército e fundada em 1946 como “Centro de Treinamento Latino-Americano”, ela
recebeu seu nome atual em 1963, para refletir sua “vocação” hemisférica.
Enclave
dos Estados Unidos
Toda a
região do canal contrasta com o resto do Panamá. Os diversos veículos
militares, as igrejas protestantes com todas as denominações, os gramados
cuidadosamente podados, as lojas intituladas “Shoe Store”, “Home Furnishing
Store”, as agências da Chase
Manhattan e do First National City
Bank: estamos sem dúvida num enclave norte-americano. Apenas a arquitetura
dos quartéis e de outros prédios oficiais (datando em geral de muitas décadas)
lembra a situação geográfica local. Antes de chegar ao prédio central,
atravessamos loteamentos compostos de espaçosas casas térreas onde estão
alojados os oficiais norte-americanos; seu nome e patente aparecem indicados na
fachada. O capitão Chalmers, que nos recebeu em nome do coronel Bauer,
comandante da escola em viagem à Nicarágua, tem mais o tipo de um intelectual
do que de um aventureiro. Faz pensar no “americano tranquilo”, de Graham
Greene. Ele nos anuncia de imediato que estamos em casa, que a escola não tem
segredos. As horríveis histórias de
cursos de tortura divulgadas principalmente pelo canal de televisão
norte-americano CBS? Mentiras. Não, essa escola, por onde passaram mais de 33
mil militares latino-americanos, não é realmente um centro de formação da
contraguerrilha. O catálogo de cursos que nos é amavelmente fornecido informa de
maneira bem vaga que a missão do estabelecimento é oferecer “cursos
fundamentais de formação profissional que se concentram nas aptidões críticas
que geralmente são padrão na América Latina”.
Contraguerrilha
Esse
documento, destinado aos assessores militares das embaixadas dos Estados Unidos
e aos governos latino-americanos inscritos no programa de assistência militar,
lembra uma brochura publicitária de venda por correspondência: os chefes do
estado-maior estrangeiros podem escolher para os oficiais, suboficiais ou
soldados que enviam à escola entre 37 cursos diferentes com duração variável
(de 3 a 42 semanas). O produto final é garantido: “Você pode ter certeza de que
antes que um estudante receba seu diploma ele deverá demonstrar aptidão em
atingir os objetivos da instrução. Somos uma boa instituição e seremos ainda
melhores”. Os países “clientes” (o termo aparece diversas vezes) podem até
fazer sugestões, que serão levadas em consideração.
No plano
“pedagógico”, a escola se divide em três departamentos: o de operações
técnicas; o de operações de combate, onde se estudam a “formação em matéria de
informações” e a “ação cívica”; e o de comando, no qual os alunos são
principalmente formados em “defesa interna”. Mas o que cobre esse último
conceito, perguntamos ao capitão. “Trata-se
de dar aos países meios para combater a guerrilha. No passado, dávamos cursos
de contraguerrilha urbana, mas não fazemos mais isso por causa da emenda
Harrington.1 Tivemos de suprimir nossos cursos de polícia militar, que eram muito
populares.” Simples questão de terminologia, pois o curso (táticas e técnicas
de infantaria) “dá uma grande importância à ação cívica militar, às operações
psicológicas, às táticas e aos conceitos das operações de contraguerrilha
urbana e rural e às técnicas de
informação militar”. O curso OE-8 (operações na selva), de três semanas,
enfatiza sobretudo “as operações táticas defensivas e ofensivas de
contraguerrilha”.
Inimigo
interno
Para as autoridades da escola, não se trata de
formar a elite dos oficiais da América Latina na defesa de suas fronteiras, mas
na luta contra o “inimigo interno”. O capitão Chalmers tem um pouco de dificuldade
em admitir a conclusão que submetemos a ele, mas confirma que entre militares de diversos países existe um grande sentimento
de camaradagem e que alguns oficiais chegaram a “acertar por telefone, do
Panamá, problemas que existiam entre seus respectivos países. Nós temos,
inclusive, entre nossos antigos alunos, homens que ocupam hoje posições
importantes, como o general Torrijos, o general Somoza, o general Pinochet...”.2
A escola oferece uma formação ideológica?
“Não”, ele nos responde. “Claro, no nosso curso de estado-maior, os estudantes
podem discutir política, do sistema comunista ao sistema democrático. Nós
apenas lhes apresentamos as doutrinas.” Citamos alguns exemplos de
“veteranos” que se desviaram – pelo fato, sem dúvida, de terem assimilado bem o
curso dado sobre democracia – e perguntamos: “O senhor considera os generais
Pinochet e Somoza maus alunos?”. Sem hesitar, a resposta vem: “Não, pois não
procuramos influenciá-los”. Ao percorrermos os corredores, ficamos boquiabertos
diante dos painéis cobertos de fotos acompanhadas de legendas. Uma era
destinada a sensibilizar os oficiais com as técnicas de infiltração. Uma foto
mostrava um prisioneiro sentado diante de um oficial que o questionava. A
atmosfera parecia mais uma conversa de botequim do que um interrogatório
“físico”. A legenda, no entanto, deixa pairar dúvidas: “Interrogar os
prisioneiros e os suspeitos para obter informações de valor, combinando este
com outros métodos”.
Redes de
solidariedade
De 1946 a 1976, 33.400 alunos frequentaram a
escola. Em 1975, os efetivos totais foram de 1.775. São os países pequenos ou
médios que têm o maior número de ex-alunos: 4.316 da Nicarágua, 3.060 da
Bolívia, 3.016 da Venezuela, 3.005 do Panamá, 2.469 do Equador etc. Os grandes
foram piores “clientes”: México (254), Brasil (346), Argentina (601). O corpo docente da escola também é multinacional. Em 1975, foram convidados, como “professores”,
22 oficiais e 20 suboficiais de 15 países, que instruíram os alunos ao lado de
seus 45 a 50 “colegas” norte-americanos. Se, atualmente, não há mais
instrutores mexicanos e costarriquenhos nem alunos vindos desses países, por
outro lado o Brasil enviou oito “professores” (num total de 47 estrangeiros).
Assim,
percebemos melhor a dupla razão de ser
da Escola das Américas. Não se trata apenas de oferecer uma formação técnica
para lutar contra os movimentos populares, única missão designada aos exércitos
do hemisfério desde a época de Kennedy-McNamara. Convém também criar redes de solidariedade, de relações
pessoais, entre oficiais norte-americanos e latino-americanos. Os brasileiros provavelmente só participam da
elaboração dos cursos para estabelecer esse tipo de contato e garantir sua
entrada nos exércitos dos outros países.
Ligações
com o império
Nenhum
esforço é medido para criar ligações estreitas com a metrópole imperial:
viagens aos Estados Unidos, convites informais às casas dos instrutores
norte-americanos etc. Imaginamos o
impressionante arquivo que o Pentágono deve possuir sobre os oficiais
“promissores” em cada um dos exércitos latino-americanos. As semanas de
formação permitem observar de perto os talentos e as reações, eventualmente as
fraquezas, de cada um. Uma vez
diplomados, os alunos permanecem unidos à escola, quer dizer, a Washington,
pelo sentimento de grupo − o pertencimento comum a esse clube relativamente
fechado. Ninguém duvida que a CIA,
garimpando nesse rico viveiro, não encontre material que “interesse” aos
oficiais para futuras “desestabilizações”. Os US$ 5 milhões de orçamento anual da escola constituiriam assim um
excelente investimento político.
No corredor de honra que leva à sala de reuniões
e onde cada país-membro é representado por sua bandeira nacional, uma carta
fica destacada, abaixo de um brasão de cobre. Endereçada ao comandante da
escola, ela termina assim: “Pedimos consequentemente que aceite o
reconhecimento do exército chileno, ao qual eu acrescento minhas sinceras
felicitações pela obra de aproximação profissional que esse instituto realiza”.
Ela data de 6 de novembro de 1973 e é assinada por Augusto Pinochet.
Bernard
Cassen é jornalista, ex-diretor geral de Le Monde Diplomatique e presidente de
honra da Atacc França.
Ilustração:
Daniel Kondo
1. Emenda
do representante Michael Harrington à lei sobre a ajuda ao estrangeiro (Foreign
Assistance Act) de 1975, que proíbe a
utilização de fundos públicos para o ensino de disciplinas que tratem da
polícia nas escolas militares.
2. Na
chefia de regimes ditatoriais respectivamente no Panamá (de 1968 a 1981),
Nicarágua (de 1967 a 1972 e de 1974 a 1979) e Chile (de 1973 a 1990).
04 de
Julho de 2012
Palavras
chave: EUA, Estados Unidos, direitos humanos, política, América Latina, Panamá,
guerrilha, tortura, império, exército, Pinochet, interrogatórios, violência
Fonte: http://www.diplomatique.org.br/edicoes_especiais_artigo.php?id=122
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