POR
MARIANA SANCHES
CASCAVEL e
MARINGÁ (PR) - O suor que escorre pelo
rosto se junta à poeira negra do carvão e tinge a face e os braços de Ivon
Belisarie. A fuligem avermelha seus olhos. Desde que chegou ao Brasil, há dois
anos e meio, de segunda a sábado, das 8h às 17h, o imigrante haitiano corta
madeira, abastece fornos que produzem carvão vegetal e ensaca o produto que
será enviado a centros urbanos do país, numa carvoaria em Maringá (PR). Ele
não se senta um minuto. Emagreceu tanto
que está abaixo do peso.
No terremoto de 2010, além de nove parentes,
Ivon perdeu o patrão, um empresário haitiano do ramo de arroz para quem
trabalhava como motorista havia 15 anos. Percebeu então que a permanência no
Haiti ficara inviável.
Trocou o conforto do ar-condicionado de veículos esportivos pelo calor, a poeira negra e a insalubridade da
carvoaria. E a companhia ruidosa dos filhos pela solidão de sequer ter dinheiro
para telefonar para casa.
Dos dez
haitianos que vieram com Ivon de Manaus para o Paraná, atraídos pela
possibilidade de reconstruir a vida, ele é o único que continua na carvoaria.
Em troca, recebe cerca de R$ 950.
— Deixei a
mulher chorando, com um bebê no colo e mais duas crianças pelas mãos, e vim
buscar dinheiro no Brasil. Tenho responsabilidade com a minha família, não
podia ficar sem trabalho — conta o haitiano, que chegou a racionar comida para enviar cerca de US$ 300 aos parentes no Haiti.
Desrespeito
a normas do trabalho
A 230 quilômetros da carvoaria, num frigorífico
em Cascavel (PR), 380 migrantes haitianos fazem, cada um, cerca de 90
movimentos por minuto para desossar frangos e pendurar galinhas. Por um salário
mensal de cerca de R$ 1 mil, suportam a rotina de oito horas e 48 minutos
diários sob um frio de nove graus, temperatura abaixo do limite de 12 graus
estabelecido pelo Ministério do Trabalho.
Trabalho
degradante, insalubre e de baixa remuneração em empresas de setores que,
frenquentemente, figuram na lista suja do trabalho escravo têm sido o destino
final de haitianos e africanos que enfrentam uma travessia dispendiosa e
arriscada, muitas vezes patrocinadas por coiotes, para chegar ao Brasil. E não
são poucos. Um estudo recém-divulgado pelo demógrafo Duval Fernandes, da
PUC-MG, estima que, até o fim deste ano, haverá cerca de 50 mil haitianos no
país. Junto a senegaleses, nigerianos e bengaleses, eles têm se engajado em
funções que não requerem qualquer nível educacional, e recusadas por
brasileiros.
— O
trabalho em frigorífico é extremamente penoso. Em três meses, o trabalhador já
começa a adoecer porque não há ser humano que suporte tanto movimento
repetitivo em temperatura tão baixa. Esse trabalho não interessa mais aos
brasileiros. Há uma analogia entre a situação desses migrantes aqui e a dos
hispânicos que lotam frigoríficos nos Estados Unidos. Só que aqui a exploração
é maior — afirma o procurador do trabalho Heiler Natali, responsável pela
vistoria dos frigoríficos.
Estrangeiros
trabalhando no corte de frango na Coopavel, frigorifico da região que contratou
380 haitianos para auxiliar de produção. - Fernando Donasci
A história
que os imigrantes contam é de promessas não cumpridas sobre salários e
alojamentos.
— A coisa
mais usual é que ele achem que vão ganhar US$ 2 mil por mês. São enganados e
também não entendem a lógica dos impostos sobre o salário — afirma Fernandes.
O haitiano
Marcelin Geffrard diz ter sido enganado por um supermercado que o levou do Acre
a Cascavel:
— Me prometeram quase R$ 900. Quando cheguei
ao Paraná, o salário era menor. Com os descontos, dava só R$ 600. Isso não dava
para comida e aluguel, e ainda tinha que mandar dinheiro para a minha filha, no
Haiti. O alojamento era sujo, camas quebraram, e a gente tinha que dormir no
chão.
Em dois meses, dez quilos mais magro
Em dois anos, Geffrard, pedagogo, com curso de
arquiteto inacabado e domínio de cinco idiomas, mudou de emprego cinco vezes.
Hoje, trabalha como cobrador de ônibus. Aos fins
de semana, faz bicos em uma pizzaria para complementar a renda. Afirma que,
apesar da longa jornada de trabalho, está muito melhor hoje do que em outras
ocupações:
— O pior lugar em que trabalhei foi o
frigorífico. Ali aguentei só 45 dias. Fazia horas extras, mas nunca recebi por
elas. Em menos de dois meses, perdi dez quilos. Muitos colegas ficaram doentes,
mas os frigoríficos não aceitam atestado e descontam o dia, se você vai ao
médico. Então, os haitianos preferem cair no chão doentes no meio da fábrica a
ir a um hospital.
A
reclamação não é isolada. No começo do ano, haitianos participaram de uma greve
em um frigorífico de Maringá. Exigiam aumento, pagamento de horas extras e fim
da jornada aos sábados. Suas reivindicações acabaram atendidas pelo empresário,
diante da ameaça de pedidos de demissão em massa. Haitianos e africanos se
tornaram hoje peças fundamentais para a produção avícola do país.
— Sem eles, eu estaria com 20% da indústria
parada — afirma Aguinel Marcondes, gerente de recursos humanos da Coopavel,
indústria que produz 195 mil frangos por dia e cujo faturamento em 2013 foi de
R$ 1,6 bilhão.
Marcondes
prossegue:
— Hoje a oferta de trabalho está grande, e não
há mão de obra para suprir as necessidades dos empresários. O próprio governo
sentiu isso e abriu as portas para esses imigrantes. Sem eles, o país não
cresceria o que deveria.
Haitiano custa menos do que chinês
A dificuldade para preencher vagas nessas
indústrias com brasileiros não é a única vantagem na contratação de quem chega
de fora. Os empresários têm enxergado neles, sobretudo nos haitianos, uma
oportunidade para reduzir seu custo de produção. Uma pesquisa feita pelo
economista britânico Paul Collier, para a Organização das Nações Unidas (ONU), mostrou que, em 2009, o Haiti tinha
um grande excedente de mão de obra qualificada. Segundo o estudo, o trabalhador
haitiano custava mais barato do que o chinês. Após o terremoto que atingiu o
país, em 2010, o excedente de mão de obra aumentou. E esses trabalhadores
começaram a desembarcar no Brasil.
Além de frigoríficos e carvoarias, eles
começaram a ser empregados em massa na construção civil. A situação chamou a
atenção do Ministério Público do Trabalho do Paraná, que investiga denúncias
dos sindicatos locais de que empreiteiras têm sido constituídas apenas para
contratar esses imigrantes. Elas preenchem as folhas da carteira de trabalho,
mas jamais registram o trabalhador efetivamente.
Haitianos e africanos descobrem a fraude meses
depois, quando o contrato termina, e eles não têm direito à rescisão e ao
seguro-desemprego, ou quando sofrem acidentes e não contam com cobertura do
INSS. Eles também receberiam menos do que o piso da categoria e cumpririam
jornadas de trabalho superiores ao limite estabelecido pela legislação.
Foi o que
aconteceu em Conceição do Mato Dentro (MG), onde cem haitianos trabalhavam na
construção de um mineroduto da empresa Anglo American. O fiscal do trabalho que
atuou no caso relatou que o alojamento
deles lembrava uma senzala. A comida
fornecida era de baixa qualidade, o que teria provocado hemorragias estomacais.
Para tentar se defender, em Cascavel, onde há
pelo menos 1,5 mil haitianos, eles criaram há dois meses a Associação de Defesa
dos Direitos dos Imigrantes Haitianos. A entidade já ganhou uma ação contra um
frigorífico que demitiu uma haitiana grávida e obteve acordo com uma
empreiteira que não havia pago verbas rescisórias.
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http://oglobo.globo.com/brasil/imigrantes-haitianos-africanos-sao-explorados-em-carvoarias-frigorificos-13633084#ixzz3AkImbSeX
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