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sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Eleições: repensando caminhos (Ivo Tonet)

Para aqueles que não estão preocupados apenas em melhorar esta forma de sociedade, mas querem construir um mundo livre das desigualdades sociais, participar ou não do processo eleitoral não é uma questão de princípio. O importante é analisar a situação concreta e verificar se a participação pode ser um instrumento, ainda que indireto, nessa luta pela transformação radical do mundo.
A situação concreta
Como resultado da trajetória histórica dos últimos cento e cinqüenta anos, a luta pela mudança do mundo encontra-se, hoje, em uma situação extremamente difícil. Ao longo destes anos, muitas foram as batalhas travadas entre o capital e o trabalho. Infelizmente, não obstante vitórias pontuais do trabalho, o que predominou foram as vitórias do capital.
Porém, algo mais grave aconteceu. Ao longo dessa trajetória, a perspectiva do trabalho, que é a de superar inteiramente o capital, foi perdendo, cada vez mais, a sua especificidade, o seu caráter radicalmente revolucionário e se tornando sempre mais reformista.
Para os revolucionários socialistas, Marx à frente, era claro que a tarefa de mudar o mundo repousava sobre os ombros das classes subalternas. Essas, reunidas ao redor da classe trabalhadora, deveriam organizar-se de maneira independente do Estado, lançar-se à luta e nesse processo ir criando uma consciência cada vez mais clara dos seus objetivos. Para eles, estava meridianamente claro que a transformação do mundo seria obra das classes subalternas organizadas e conscientes e jamais do Estado. Portanto, que o eixo da luta revolucionária nunca poderia ser o parlamento e o Estado. O objetivo não poderia ser a tomada do poder, para, por meio dele, conduzir a mudança do mundo. A tomada do poder seria apenas um primeiro momento, que criaria as condições para que a “alma social”, ou seja, as mudanças concretas nas relações de trabalho – a instauração de uma forma de trabalho comandada de modo consciente, livre e coletivo pelos próprios trabalhadores – pudesse se manifestar plenamente.
Eles sabiam que o Estado sempre seria, em essência, um instrumento das classes dominantes e que, portanto, jamais poderia ser simplesmente conquistado, reformado e posto a serviço das classes subalternas. Sabiam que, por mais desenvolvido que fosse o sistema democrático, ele só poderia admitir a participação dos trabalhadores na medida em que aceitassem os limites impostos pela propriedade privada. Sabiam, também, que o Estado não é composto apenas do legislativo e do executivo, mas também do sistema judiciário, administrativo e repressivo. Que, portanto, mesmo se houvesse possibilidade de ocupar o executivo e ter maioria no legislativo, ainda assim, os trabalhadores estariam longe de ter efetivamente o poder do Estado em suas mãos. Sabiam, além disso, que o sistema político-eleitoral é a melhor forma de iludir e desmobilizar a população, pois a leva a acreditar que o poder está em suas mãos, quando, de fato, ele jamais escapa ao controle das classes dominantes. No entanto, embora não tendo ilusões quanto ao sistema democrático burguês, tinham claro que a democracia é o melhor espaço para levar a luta do trabalho contra o capital até o seu fim. Por isso mesmo, para eles, a democracia jamais poderia ser suprimida por decreto. A democracia só poderia extinguir-se quando entrasse em cena uma forma superior de liberdade. E esta seria, necessariamente, fundada no trabalho associado. Assim como o trabalho abstrato é o fundamento do modo de produção capitalista, o trabalho associado é o fundamento da livre associação dos trabalhadores associados, outro nome para o modo de produção comunista.

No entanto, por um processo extremamente complexo e tortuoso, e tanto pela via reformista da social-democracia alemã, como pela via revolucionária soviética e depois pela chamada “via democrática”, o eixo da luta foi sendo deslocado da organização autônoma e independente da classe trabalhadora para o interior do Estado e do parlamento. Os reformistas, acreditando que, através da ampliação da participação da classe trabalhadora no parlamento, os trabalhadores poderiam aumentar cada vez mais o seu peso e assim tomar o poder do Estado para, por intermédio dele, realizar as transformações rumo ao socialismo. Os revolucionários, inicialmente na Rússia e depois em todas os outros países), porque se viram diante de uma situação na qual faltavam as condições materiais para caminhar no sentido do socialismo. Isto é, faltavam, exatamente, as condições para instaurar o trabalho associado, a “livre associação dos trabalhadores livres”. Por isso, entenderam que deveriam utilizar-se do Estado como esse instrumento capaz de dirigir a criação daquelas condições. Os reformistas da “via democrática” (eurocomunistas e socialistas democráticos, seguidos pela maioria da esquerda dos países capitalistas), acreditando que o caminho da transformação do mundo passava pela ampliação da influência da esquerda na chamada sociedade civil e, depois, no próprio Estado.
Por todos esses caminhos, o campo de luta foi sendo deslocado, teórica e praticamente, do terreno da “fábrica”, isto é, do lugar onde se produz a riqueza material e por isso, onde se dá o embate fundamental entre o capital e o trabalho e a partir do qual se deve dar a organização e tomada de consciência da classe trabalhadora, para o terreno do parlamento e do Estado. E, mesmo quando as lutas extra-parlamentares eram incentivadas, sempre se deixava claro que elas deveriam desaguar no parlamento. O resultado disso é que as classes populares e, com o tempo, também a maior parte dos revolucionários, foram levadas a acreditar que poderiam intervir decisivamente na transformação do mundo apenas depositando o seu voto nas urnas. Além disto, também foram levadas a acreditar que a falta de atendimento às suas reivindicações estaria ora na má administração, ora na traição dos políticos e partidos, ora na falta de honestidade, ora na falta de recursos, etc.,jamais na própria essência das relações materiais da sociedade (as relações de produção capitalistas) e no Estado, como instrumento necessário para a reprodução dessas relações.
Passividade, desmobilização, alienação, acomodação diante da continuidade e até do crescimento das desigualdades sociais, perda completa da perspectiva de uma transformação radical do mundo e perda da consciência de que são elas, as classes subalternas, que devem assumir o protagonismo dessa transformação, contra o capital e contra o Estado. Essas foram as conseqüências do deslocamento, realizado pela esquerda, da centralidade do trabalho para a centralidade da política. Deste modo, os partidos ditos de esquerda passaram a comportar-se como típicos partidos burgueses. Fazendo das massas populares meras massas de manobra para a realização dos seus interesses.
É interessante ver a maneira de atuar dos partidos burgueses. Os capitalistas sabem que a sua força não está no parlamento, mas lá onde se concentra a produção e a circulação da riqueza. Contudo, sabem, também, que o Estado é um instrumento indispensável para a manutenção e reprodução dos seus interesses. Por isso, utilizam-se do processo eleitoral, e aí estão incluídos todos os meios legais e ilegais, para levar os seus representantes a ocuparem o poder do Estado. Mas, o que é importante: eles – os capitalistas – jamais deixam de ter o controle em suas mãos. Não são eles que são instrumentos do Estado, o Estado é que é o seu instrumento. Esta é exatamente a forma de agir que convém à reprodução dos interesses das classes dominantes.
Ora, os partidos e outras organizações de esquerda, ao pretenderem agir desta mesma forma, desvirtuam completamente as tarefas que são próprias da classe trabalhadora.
Ao contrário do capital, o trabalho não admite uma estrutura de comando centralizada. A produção da riqueza (o trabalho) é necessariamente social, ao passo que a apropriação é sempre privada, quer dizer, concentrada em poucas mãos. Por isso mesmo, a libertação da classe trabalhadora não pode ser obra de um pequeno grupo organizado, mesmo sob a forma do Estado. Tem que ser obra do conjunto da classe trabalhadora, consciente e organizada de forma independente e contrária ao Estado e ao capital. Em conseqüência disto, só faz sentido as classes populares participarem do processo político-eleitoral se elas puderem controlar os seus representantes. Mas, elas só poderão controlá-los se estiverem conscientes dos seus interesses e organizadas para defendê-los. Se isto não acontecer, elas se transformarão, inevitavelmente, em massa de manobra. Após elegerem os governantes, estas massas não terão como exigir de seus representantes o cumprimento do que foi prometido, tornando-se, então, expectadoras passivas e desorientadas.
Foi isto o que aconteceu no Brasil ao longo destes últimos vinte e cinco anos. Os partidos de esquerda, especialmente o PT, transformaram a chegada ao poder em fim em si mesmo. Para isso, viram-se obrigados a fazer cada vez mais concessões e alianças com forças que seriam, em princípio, inteiramente contrárias à realização de profundas transformações na sociedade brasileira.
Esse processo de reformização implicou, por sua vez, a burocratização dos partidos, pois, a ocupação da máquina do Estado se transformou em meio de reprodução dos interesses dessa vasta camada de parlamentares e burocratas sindicais e intelectuais. Assim, o que era meio – a busca de postos no parlamento e no Estado para defender lá os interesses dos trabalhadores – passa a ser fim, ou seja, a reprodução dos seus próprios interesses. E, de novo, as classes populares passam a ser apenas massas de manobra para o momento da eleição e nada mais. Em troca disso recebem apenas migalhas, pois as políticas econômicas implementadas por esses partidos continuam a carrear as riquezas para as mãos dos capitalistas, nacionais e internacionais. Tudo isso, claro, recoberto com o discurso da mudança e da transformação e com a necessária concessão de pequenos benefícios para as classes populares.
O sentido do voto nulo
Por todos estes motivos, hoje, o voto nulo é, ao nosso ver, a melhor opção. Mas, ele embute um enorme perigo. Porque pode ter dois sentidos. Pode ser simplesmente um voto de protesto. Vale dizer, a manifestação de um descontentamento com a forma da política burguesa e não com o conteúdo da própria política. Pode significar a insatisfação com a corrupção, a desonestidade, a roubalheira, as falcatruas, o descaso com o interesse público que tem dominado a cena política. Isso significa, por sua vez, que não se está rejeitando a forma burguesa de fazer política, com todas as suas conseqüências, mas, apenas, que se gostaria que dar um “recado” para que a vida política fosse reformulada no sentido da honestidade e da preocupação com o interesse público.
Esta é, muito provavelmente, a preocupação predominante entre aqueles que se dispõem a anular o seu voto.
Nisso reside um enorme perigo. Pois, dessa maneira não se faz avançar, de modo nenhum, a consciência política revolucionária.
É preciso compreender que o problema não está na honestidade ou não dos políticos. A política burguesa implicará sempre, em menor ou maior grau, de forma mais aberta ou velada, a corrupção e a predominância do interesse particular sobre o interesse público. Se o poder político, numa sociedade capitalista, é a expressão, ainda que mediada, dos interesses econômicos, que são particulares, isso não poderia ser diferente.
A questão, pois, não é de honestidade, mas do que se pretende fazer e do compromisso efetivo, provado na vida diária, com um programa de transformações radicais da sociedade. Há políticos burgueses que são honestos. Nem por isso, estão comprometidos com os interesses dos trabalhadores. Para as classes populares, isso significa que elas precisam, através de um processo de lutas, que leva à tomada de consciência e organização, estabelecer claramente quais as propostas que querem ver realizadas. Propostas que sinalizem claramente na direção de uma confrontação com o capital e com o Estado, embora isto não tenha que ser de modo direto e imediato. E ter a possibilidade, oriunda dessa consciência e dessa organização independente (do capital e do Estado), de controlar aqueles que forem levados a ocupar postos no Estado.
Por isso mesmo, ao nosso ver, o voto nulo só significará um avanço na medida que expressar a clara intenção de desfazer o deslocamento da centralidade do trabalho para a centralidade da política. De recolocar a perspectiva do trabalho em primeiro plano, isto é, a priorização das lutas extra-parlamentares, a tomada de consciência e organização independente das classes subalternas, a tomada de consciência de que são elas os sujeitos fundamentais das transformações sociais, de que não é através do processo político-eleitoral que se realizarão as transformações que lhes interessam.
Voltamos a enfatizar: não se trata de rejeitar, para sempre e por princípio, a participação no processo eleitoral. Mas, de ter claro que esta participação só atende os interesses das classes subalternas quando estas, através do processo de lutas, estiverem conscientes e organizadas para fazer valer os seus interesses.
Por isso mesmo, na medida em que essa consciência e essa organização estão, hoje, muitíssimo debilitadas, todo o investimento de trabalho político deveria estar voltado nessa direção. Em conseqüência disso, ao nosso ver, a questão fundamental, nesse momento, é mudar o eixo da luta das classes subalternas. É escapar do círculo de ferro, imposto pelo capital e aceito pela esquerda, que limita a luta ao interior do processo político-eleitoral. É levar as classes populares a reassumir o protagonismo das transformações sociais.
Ivo Tonet
(Possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Paraná (1975), mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1982) e doutorado em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2001). Atualmente é professor de filosofia da Universidade Federal de Alagoas. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Filosofia política, atuando principalmente nos seguintes temas: socialismo, marxismo, política e educação. Aposentado a partir de 09/04/2013)

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