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segunda-feira, 5 de maio de 2014

De 540 a 514: O caso do roubo a uma bicicleta em Fortaleza (Ronaldo de Queiroz Lima)

Artigo apresentado na Universidade Federal do Ceará -Departamento de Ciências Sociais - Programa de Pós-Graduação – Mestrado - Disciplina: Teoria Sociológica II - Docentes: Professora Dra. Alba Maria Pinho de Carvalho e Professora Dra. Irlys Barreira. Texto ainda sujeito a alterações e inserções que estão sendo manejadas pelo autor (provisório). Orientadora: Dra. Isabelle Braz Peixoto da Silva. Linha de Pesquisa: Diversidade cultural, gênero e processos identitários. Texto submetido ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará como requisito para aquisição de créditos referente à disciplina Teoria Sociológica II do Mestrado. Fortaleza, Janeiro de 2014. Publicação autorizada nesta página pelo autor.

1 INTRODUÇÃO
O número quinhentos e quarenta do título corresponde ao valor que paguei a credito por uma bicicleta, minha propriedade pouco mais de um mês. Nada de obsolescência programada, foi assalto à mão armada por faca de cozinha. Isso mesmo, na ciclovia da Avenida Godofredo Maciel, Fortaleza-CE, por volta de 20:45 na altura da Lagoa da Maraponga, sentido sertão-praia. Eu estava voltando da faculdade em direção a minha casa no Conjunto Industrial – município de Maracanaú, Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), quando um jovem assaltante me parou mostrando uma faca e disse: “eu só quero a bicicleta”. Safei-me dele ter levado a minha mochila com os meus textos do GEPE (Grupo de Estudos e Pesquisa em Étnicas), a minha caderneta de anotações, meu estojo de canetas e lápis, a minha carteira com documentos e dinheiro. Tive sorte!
O interessante é que não paguei nem a primeira das seis prestações. Contrariante tal afirmativa, mas não lamento a perca material, pois tenho a consciência de ser possível comprar outra bicicleta idêntica. Além do mais, valores materiais são temporais! Esse aprendizado se sedimenta por ter sido vítima de outros assaltos e pelo conhecimento cristão espírita kardecista. Por mais que o cicloativismo hoje venha ganhando visibilidade como alternativa aos engarrafamentos e à poluição nas cidades do mundo ocidental, ideologia da qual compartilho e estava atuando antes do roubo, o que lamento mesmo é a degradação humana do jovem que me assaltou. O fenótipo, aparentemente, denunciava o vício na “pedra”, mas pode haver engano porque desconheço essa realidade, apenas atento para o assunto em distintos veículos.
Afinal, o Cientista Social deve estar em constante sintonia com o mundo no qual está vivendo. Sempre que puder, é importante levantar questões cuja finalidade seja imergir na complexidade humana de seu tempo. Ele pode também tornar a sua própria experiência caso de reflexão teórica sobre relações sociais, sejam elas na esfera do poder, da interculturalidade, das representações ou das instituições sociais. É possível também se questionar sobre a vida humana, como se constrói na era moderna. Problematizar o que as pessoas pensam geralmente, o que sentem e como traçam objetivo, como elas agem para consegui-los, quais percursos tomam através dos quais constroem modos de vida peculiares, com as individualidades, contraria a tradição empírica da produção do conhecimento científico. A separação entre “objeto” e sujeito não permite a percepção da dimensão subjetiva da vida social, mas sim representações de subjetividade, simbologias.
Então, no intuito de desenvolver uma reflexão que adentre na dimensão subjetiva da realidade social em centros urbanos, pode-se começar a questionar: Por que um jovem de periferia se sujeita a roubar, mesmo sem saber a capacidade de reação de sua possível vítima? Depois do roubo já no posto de gasolina da Rua Nereu Ramos, refleti sobre o risco que aquele jovem assaltante passou, enquanto ligava para o número de emergência – 190 – e registrava a ocorrência.

Durante a espera pela viatura do Ronda, conversei com alguns frentistas sobre o ocorrido. Eles falaram sobre outros casos de pessoas assaltadas que portavam armas de fogo, policiais e não policiais, que executaram assaltantes em diferentes lugares do país. Concluo que aquele jovem assaltante também teve sorte ao ter roubado um Cientista Social. Pensando além do evento criminoso, a disposição do jovem para assaltar é a mesma para ferir ou ser ferido e até mesmo matar ou ser morto. Essa disposição é potencialmente nociva à vida em sociedade, pois é claramente um comportamento suicida. Nada de avaliação moralista, mas é a morte suicida degradante da vida social pelo fato de não favorecer a interatividade pela ausência precoce de indivíduos. A inclinação para o roubo tanto é suicida como também fomenta o homicídio, pois o assaltante pode ser morto, mesmo isso sendo também um crime por se tratar de um valor moral disseminado na sociedade brasileira.
Como já fui assaltado várias vezes, o ocorrido não me causou abalo qualquer, ao contrário, me instigou ao pensamento sociológico sobre violência, área que não atuo, apenas vivencio como qualquer outro citadino. Mas é importante, mesmo como habitante da cidade, tornar esse “roubo” uma reflexão de cunho sociológico para irmos à complexidade do problema. Deixo clara também a veia antropológica que nutre o pensamento construtor deste texto, dando meio para uma leitura sobre a violência, dimensão do real, a partir de uma perspectiva da subjetividade humana. É importante perceber que valores sociais, crenças, pensamentos e sentimentos sociais correspondem a uma época e ao espaço construídos em processos sócio-históricos. Daí perceber o mundo social sob uma perspectiva histórica nos permite compreender a diversidade cultural homogeneizada pela civilização moderna. Já faz quinhentos e quatorze anos que a modernidade ocidental chegou ao continente sul americano.
O projeto de civilizar o novo mundo para extrair suas riquezas denota um capitalismo primitivo produtor de desigualdade social e, sobretudo, de inferiorização das populações não civilizadas, seriam equivalentes aos bárbaros os “selvagens” no início da era moderna. Os cinco séculos de Brasil foram transcorridos por alianças com o gentio, caça aos rebeldes, conquista de território pela Coroa lusitana, guerras contra franceses e holandeses, escravidão de negros de diferentes nações, produção extrativista, produção do açúcar, fazendas de gado, descoberta do ouro e da prata nas Gerais; doação de sesmarias, instalação de vilas, construção de cidades. Os regimes colonial, imperial e republicano marcam eras distintas na formação do Brasil, entretanto, produziram desigualdade social fundada na exclusão da população negra e indígena fugidos de cativeiros e em confronto constante com o modo de vida eurocêntrica.
Afinal, qual o motivo real de produção para sociedades caçadora-pescadora-coletora? Por que servir de escravo já conhecendo a liberdade num sistema próprio de vida? O fato é que a modernidade no Brasil vai sendo construída mediante a violência física, social, religiosa, cultural, simbólica. O extermínio de tribos de nativos e de populações negras é a argamassa para consolidar o domínio português e estabelecer o modo de vida ocidental europeu, mas com o objetivo de acumular riquezas para a metrópole. Tal lógica produtiva permanece no instante imperial e na era republicana, o que favoreceu domínio de uma elite aristocrática sobre o monopólio da produção agropecuária, repetindo-se na industrialização brasileira. Por outro lado a lógica da produção para sobrevivência permanece também conjuntamente com valores religiosos e sociais oriundos de religiosidades xamânicas, mas que tomaram a roupagem do cristianismo católico, predominante em meio à elite brasileira.
A pobreza emergiu tão rápido quanto à produtividade brasileira no campo e se intensificou nas cidades com a industrialização brasileira. Compreender tal fenômeno social é pensar em desigualdade social e perceber a discriminação racial e cultural como fatores organizadores da sociedade brasileira, cuja exploração dos operários fabris foi o lugar nas cidades destinado às pessoas de grupos sociais historicamente inferiorizados. No meio rural, os descendentes sociais dos colonizados foram ser pequenos produtores, ou trabalhar em fazendas. A injustiça social a que hoje se referem os estudiosos da pobreza foi produzida no Brasil, assim como nos países colonizados, por relações conflituosas de inferiorização, de tal modo, que a hegemonia brasileira fora estabelecida sob a égide da violência. Então, pode-se dizer; que já são 514 anos de violência produzida por desigualdade econômica, social, não por selvageria ou primitivismo, mas por inferiorização de modos de vida humana distintos da ideologia criadora do Estado-nação.
O mundo onde existia a partilha de alimentos, a troca não monetária entre tribos distintas, onde se retirava da Natureza os meios para viver, deu espaço a mercantilização a priori, sendo a produção industrial o agente da mercadorização do modo de vida humano na modernidade. Para constatar tal realidade basta pensar no que é possível realizar sem que se precise comprar alguma coisa ou serviço? Dificilmente a sociabilidade nos centros urbanos não acontece sem o intermédio de algum tipo de mercadoria. Mesmo de maneira indireta, a mercadorização aparece na vida dos citadinos modernos e dos campesinos. É o consumo um fato que aproxima os diferentes e divergentes grupos humanos, que estabelece contato entre diferentes segmentos sociais.
2 MÉTODO E METODOLOGIA OU ELABORAÇÃO EPISTEMOLÓGICA.
Resolvi fazer alguns apontamentos analíticos sobre a violência urbana no Brasil a partir da minha experiência mais recente como vítima de roubo. Tangencio o meu tema de pesquisa que é sobre os Tremembé de Acaraú e o processo de territorialização em Queimadas do ponto de vista da Antropologia histórica. Isso com o intuito de perceber como o processo de colonização foi produtor de desigualdades sociais de maneira a inferiorizar os grupos indígenas e os negros a ponto de invisibilizá-los na massa de trabalhadores e de desempregados residentes nas periferias dos centros urbanos. As categorizações genéricas invisibilizam as diferenças étnicas e o processo de inferiorização de raças inerente à colonização.
Na lida com o roubo como fenômeno social, devemos nos livrar tanto do senso comum como da razão indolente, como bem postulou Boaventura de Sousa Santos (BSS), nos libertando de análises metonímicas, ou seja, que tomam a parte pelo todo, do tipo “ladrão é tudo igual” ou mais além, no que concerne ao uso dos termos genéricos e discriminatórios típicos da linguagem policialesca difundida na sociedade em geral: vândalo, vagabundo, assaltante, delinquente, “de menor”, “de maior” e etc. As categorias genéricas do senso comum para designar infratores da lei reproduzem uma ideologia positivista de manutenção da ordem. Mas que ordem é essa? A supremacia da propriedade. Se pensarmos no consumo como aquisição de propriedade sobre mercadorias, logo vamos compreender que o roubo viola a propriedade de alguém sobre uma mercadoria. Está aí sendo violada a ordem através do abalo de uma das pilastras da civilização: a propriedade privada.
Rompendo com os grilhões da simplificação do real em modelos teóricos de estirpe racionalista ou empirista, é que temos como missão compreender a complexidade dos eventos da vida humana em sociedade ou pelo menos manter a intenção sem a ilusão de poder esgotá-los. Caminhando com o referido pensador, pensamos o evento do roubo a partir da proposta dele de ruptura com o monopólio de teorias do Norte, de onde emergiram os colonizadores de todo o mundo, para pensarmos a partir do Sul do mundo. A renovação do pensamento crítico proposta por BSS emerge da necessidade em se conhecer o desconhecido. Ausências são produzidas pelo monopólio epistemológico do Norte desenvolvido, que tem na ciência a única forma de conhecer a realidade. Reduzem-se, dessa forma, os acontecimentos do presente, empobrecendo a realidade, simplificando-a, indolentemente.  
Como são produzidas as ausências? Primeiro, através da monocultura e do rigor: ideia que reconhece a verdade sobre a realidade apenas no conhecimento científico, sendo esse o único que possui rigor metodológico. Tal noção obscurece os saberes comuns, populares, os das populações indígenas, quilombolas, o saber das pessoas do meio urbano, pois eles não têm importância por não terem rigor. Então, ocorre o que BSS denominou de “epistemicídiocom a invisibilidade da pluralidade de saberes. Segundo, é a linearidade do tempo uma monocultura pelo fato de atribuir um único sentido a história: o progresso do menos evoluído para o mais evoluído. Assim, os países desenvolvidos são os que estão na dianteira da humanidade, por isso são as referências para o Sul do mundo em desenvolvimento, embora tenham sido forjados em contextos socioculturais e históricos completamente distintos. BSS denomina de monocultura da naturalização das diferenças, uma terceira forma de monopólio epistêmico, pois há hierarquia fundamentada na inferiorização das raças, dos povos, das nações e sem dúvida dos pobres e desempregados, acrescento. A quarta monocultura é a da escala dominante, a qual implica na ideia de que a globalização e a universalização são noções hegemônicas no campo da produção do conhecimento científico sobre as realidades sociais, descartando o particular e o local como ausências. A quinta e última monocultura se refere à produtividade capitalista que compreende a produtividade humana como um ciclo de produção. A lógica indígena de deixar a terra descansar um ano para plantar novamente no ano seguinte é ausência por não se adequar a lógica produtiva hegemônica.
Essas cinco monoculturas produzem ausências que fundamentam o que BSS denominou de razão metonímica cuja compreensão é indolente pelo fato de considerar conhecimento apenas o científico, herança do positivismo, portanto, empirismo cuja realidade é apreendida objetivamente. Então, para conhecê-la deve-se isolar o objeto correspondente, mas o avanço dessa tradição sobre o mundo social permitiu perceber que é possível apenas revelar facetas da realidade a cada objeto analisado. Tudo aquilo que não pode ser enquadrado como objeto é ausência, não existe, ou apenas há representações de uma dada realidade.
Logo no Sul predominam inexistências, tais como constantemente vem acontecendo em relação à existência de populações indígenas, quilombolas e pesqueiras brasileiras, especialmente no que diz respeito à demarcação de terras tradicionais. Esse redirecionamento aponta o olhar das Ciências Sociais para as ex-colônias e para o processo histórico da colonização, dando vazão ao pensamento descolonial que emerge nos países geopolítica e economicamente categorizados como sulistas. Para renovar a teoria crítica é que BSS propõe uma Sociologia das ausências como alternativa ao monopólio epistemológico do Norte, cuja essência colonialista formula o perfil de seu caráter.
 As teorias da etnicidade (POTIGNAT:1998) emergem no estudo das diversidades culturais vivenciadas no interior da vida nas grandes metrópoles do mundo moderno. A noção de relações interétnicas em confluência no âmago da vida social nos permite sinalizar quão complexas são as relações sociais no mundo contemporâneo, no qual uma singularidade étnica está em contato com outras de maneira interativa e conflituosa, sem uma delas simplesmente ser varrida da história. Pensar em etnicidade é perceber a subjetividade individual que remete a um grupo, seja por sentimento de pertencimento, por identificação comportamental, por práticas semelhantes, por orientação religiosa, por reivindicações políticas. Então, as relações interétnicas colocam em contato dois ou mais universos culturais distintos, o que gera relações conflituosas. Um desses contatos pode-se perceber no encontro com o assaltante que roubou a bicicleta. Fato bastante comum na modernidade, o roubo é naturalizado, de tal forma, que os citadinos desenvolvem várias estratégias para não serem assaltados: não atender o celular na rua, evitar lugares estranhos, evitar a caminhada como deslocamento, evitar estar em determinados lugares em determinados horários e etc. Há uma sensação de liberdade reduzida na modernidade, que o diga a passeata Fortaleza Apavorada[1].
Essa é uma dimensão da violência no mundo contemporâneo ainda pouco explorado pelas Ciências Sociais (CS). No caso do Brasil, há a peculiaridade da colonização, através da qual foram forjadas relações de inferiorização das nações nativas (indígenas) e das populações negras advindas de diferentes reinos do continente africano como escravos. A espoliação de terras dos nativos e o genocídio de várias tribos indígenas e negras foram faces da realidade dessas populações. Vários indivíduos oriundos dessas matrizes policulturais foram sendo incorporados ao sistema colonial, seus descendentes ao imperial e os descendentes deles ao regime republicano.
Até aqui, se quisermos resumir a proposta de reflexão sociológica nutrida por uma artéria antropológica sobre o caso do assalta e a violência na contemporaneidade, teríamos as seguintes palavras-chave: violência, etnicidade, consumo. O contexto no qual se abrem esses caminhos de pensamento é o Sul do mundo, metáfora cunhada por BSS para designar os países subdesenvolvidos, ex-colônias, polos de extração de riquezas naturais para a acumulação do capital europeu, no momento histórico da economia denominado de acumulação primitiva de capital por exploração de recursos minerais e extrativismo no Novo Mundo (GALEANO: [1978] 2011).
Pensando num panorama internacional, o Brasil é sul-americano, hoje. É um Estado erigido sob um processo colonizador inventado a partir de empreendimento civilizatório ibérico, no qual o modo de vida europeu foi, gradativamente, sendo implantado com as nações originárias denominadas indígenas (ALMEIDA:2013). Tal categorização torna invisível a diversidade de nações silvícolas que habitavam o Novo Mundo. Por conhecerem tão bem as matas, as florestas e o semiárido, é que subsidiaram a sedimentação da colônia portuguesa, pois foram imprescindíveis para a regularidade da atividade extrativista e da produção agrícola da cana, integrando-se ao modo de vida europeu e por fim ao Brasil (BONFIM: 1997). Por outro lado, outras nações se recusaram a viver como a etiqueta católica prescrevia e conforme o caráter produtivista da colônia lusitana. Esses foram caçados e dizimados (OLIVEIRA: 2011).
Quero afirmar a perspectiva histórica na qual está imersa esta reflexão sobre o roubo da bicicleta, a qual compreende o respectivo evento como fato social do Brasil de hoje, mas que tem raízes históricas no processo de formação deste país em face de uma ideologia colonialista. Isso implica na organização social brasileira por distinção racial. Independente da inserção no sistema de produção, ou da capacidade produtiva, no Brasil se construíram relações sociais mediadas pelas diferenças de cor, de culto e de modo de vida. O modelo de nação projetado pela Corte portuguesa, herdado e reinventado pelo Império e mais tarde pela República colocava índios e negros como inferiores, tendo lugar no Brasil para os primeiros como trabalhadores do campo, excluindo os segundos. Tal circunstância histórica é crucial para a formação das áreas urbanas periféricas por negros e indígenas integrados ao Estado Novo e ao processo de industrialização, embora alheios aos centros comerciais e políticos ocupados pela “aristocracia” euro-descendente.
Não por acaso nas áreas urbanas onde habitam as pessoas pobres categorizadas como periferia, favela ou morro há notória concentração de população negra e também de indígenas. É provável que o jovem assaltante mencionado resida numa área pobre de Fortaleza, pois a Lagoa da Maraponga, palco da infração, é circunscrita por comunidades pobres, independentemente da própria auto-identificação étnica. Não por acaso também as áreas categorizadas como as mais perigosas de Fortaleza são bairros periféricos. Esse é um fato historicamente, pois a esses espaços couberam os grupos sociais historicamente excluídos. Na sobreposição do interesse do Estado as minorias étnicas no que diz respeito à demarcação de terras e no caso das remoções de comunidades pobres é que se percebe a operação de uma ideologia colonialista. Inferiorizam-se as minorias étnicas, os moradores das periferias, lugar que abriga os descendentes dos grupos sociais historicamente dominados, espoliados, exterminados por Estado Nacional.
Seria interessante aprofundar o processo de construção social do Brasil, das áreas urbanas, a relação entre Estado, Iniciativa Privada e as populações pobres, também sobre a população que nem é rica e nem pobre, mas de estabilidade econômica. Explorando essas temáticas sob uma perspectiva histórica e da diversidade cultura, mas a intenção de citar a peculiaridade organizacional do Brasil remete a necessidade de se justificar o uso do termo pobreza. Esse último por sua vez é utilizado por vezes para classificar grupos humanos sob a perspectiva econômica contemporânea, mas aqui busca evidenciar a historicidade das populações que hoje são classificadas como pobres. Portanto, enfatiza-se o processo socio-histórico de colonização como formador da sociedade brasileira. Essa perspectiva permite construir uma leitura sobre o fenômeno do roubo na modernidade de maneira a produzir percursos possíveis às epistemologias do sul.

3 IMERSÃO NO EVENTO ROUBO: ANTROPOLÓGIA SOCIOLÓGICA OU SOCIOLOGIA ANTROPOLÓGICA.
É preciso dizer, primeiramente, que o roubo tratado aqui não é o fato consumado como violência moral ao cidadão de bem, ao trabalhador que paga seus impostos para ter comodidade e segurança. Refere-se, sim, a experiência humana onde a propriedade privada sobre uma mercadoria é liquidada por um assalto, meio pelo qual outra pessoa adquire um dado produto de uma primeira sem pagar por isso. Há aí a relação entre propriedade privada e a propriedade roubada. Tal fato não é exclusivo do Brasil, ao contrário, mas talvez o roubo de bicicleta seja uma peculiaridade nossa. O fato é que o roubo de objetos de consumo humano geralmente acontece através de pessoas que desejam consumir e não podem comprar. A impossibilidade do consumo é um estado social vivido por indivíduos de distintos segmentos sociais, que por distintas motivações, roubam para saciar o desejo de consumir produzido socialmente. Rouba-se algo que se deseja e não pode comprar. O desejo corresponde a uma dimensão subjetiva do mundo social e a impossibilidade de comprar se refere a um processo sócio-histórico excludente dos grupos humanos inferiorizados pela civilização.
A Ciência moderna emerge sob o paradigma cartesiano, postulado principalmente por Descartes, cujo fundamento está distinção entre objeto e sujeito. A verdade se conhece pelo trabalho científico. O pensamento moderno foi alicerçado na precisão em si conhecer alguma coisa e para tanto é necessário o isolamento de um objeto da realidade. Roberto Cardoso de Oliveira (RCO) numa conferencia de título O lugar (e em lugar) do método na Universidade do Paraná em evento comemorativo do centenário do clássico As regras do método sociológico (RMS) de Émile Durkheim, sinaliza a emergência das Ciências Sociais (CS) a partir do mesmo paradigma que dava legitimidade às Ciências Naturais. Esse autor argumenta que como a CS era recente precisava se firmar enquanto campo de conhecimento científico e demonstra como Durkheim se fundamenta na Biologia, uma ciência já consolidada, para elaborar a RMS.
Então, o “objeto” da CS é o fato social, isolado dos sujeitos à medida que é tratado como coisa, seguindo a tradição filosófica racionalista. RCO mostra que tal método não considera as individualidades, pois a verdade científica está no método que desconsidera qualquer pré-noção, juízo de valor, sentimento. A subjetividade é uma ausência na perspectiva empirista. Então, o trabalho antropológico ao lidar com culturas visa adentrar no campo da subjetividade humana, rompendo com o monopólio epistêmico da objetividade na CS, argumenta RCO.
Uma virada epistemológica é proposta também por Edgar Morin ao trilhar o caminho para uma teoria da complexidade, saindo do reducionismo do cientificismo empirista. Através da noção de sistemas aberto e fechado, elabora meios teóricos que considerem a criatividade, a subjetividade, as individualidades no mundo humano enquanto canais do conhecimento científico. Tal autor considera que o homem está na Natureza e a diferenciação do primeiro no meio é onde reside a complexidade. Além disso, reaproxima sujeito e objeto, de tal forma, que conclui sobre a interdependência deles, ou seja, um só é possível em relação ao outro.
Tim Ingold cunha a noção de ambiente, em aprofundamento da noção de contexto e propõe a vida como centro dos estudos antropológicos, rompendo com o antropocentrismo antropológico, pois há homem por haver condições ambientais para o mesmo viver. A Antropologia da vida ou “filosofia com gente dentro”, como o próprio afirmou numa conferência, visualiza os seres vivos do planeta, os elementos inanimados que possibilitam a vida (luz solar, ar, água, terra e as plantas), compreendendo a existência humana como parte integrante do ecossistema da vida. Há aí uma proposta ainda mais radical que rompe com o objetivismo científico e com a separação entre homem e natureza, para além da imersão científica na dimensão da subjetividade humana. Acresce também que o Antropólogo quando desempenha o trabalho de pesquisa e da produção de conhecimento está imerso no ambiente, tanto quanto os elementos e seres que escreve sobre. A neutralidade científica, característica pertencente ao cientificismo empirista, dar lugar ao sujeito imerso num ambiente do qual é parte integrante e de que depende para viver.
Nessa perspectiva há uma mudança radical no trabalho científico. São avanços teóricos em relação ao racionalismo científico ocidental, os quais são inerentes à prática científica, pois as teorias de uma época devem ser superadas para a Ciência avançar. Por que não pensar numa Sociologia da vida, ao invés da representação teórica das relações sociais?
 Nesse fluxo de renovação das CS, sobretudo, no que concerne a ruptura com o monopólio científico empirista no mundo científico é que se localiza a proposta de Boaventura de Souza Santos (BSS) de reinvenção da produção de conhecimento. Ele está ao lado dos demais autores citados que também propõem avanços epistemológicos significativos, inclusive para além do paradigma da representação social. A ecologia de saberes de BSS propõe como avanço na produção do conhecimento científico considerar os saberes para além da academia. Nesse fluxo espistemológico, não é incoerente também pensar sobre saberes “suburbanos” como conhecimentos gerados entre as pessoas que vivem nas periferias dos centros urbanos. Esse conhecimento emerge do contato com o centro urbano mediado pelo Estado, constantemente, por policiamento ostensivo. Na periferia não é vigiar e punir, mas intimidar e discriminar.
Uma experiência de periferia geradora de saber é o Centro de Defesa da Vida Hebert de Souza (CDVHS), organização não governamental, localizado no Grande Bom Jardim, onde atua. O museu construído salvaguarda a memória das lutas por moradia da qual emergiu um saber capaz de se desdobrar em várias ações políticas e de formação em Direitos Humanos. Esse é o caso da inauguração em 2013 da Escola de defensores populares de Direitos Humanos pelo CDVHS. É importante o olhar sociológico para o mundo social tentando atingir o nível da experiência humana, tendo como dimensão epistemológica não somente a objetividade tão pouca a subjetividade, mas a natureza humana que se expressa objetiva e subjetivamente. E tendo em vista que a vida humana acontece em lugar e tempo específicos e se manifesta nos ambientes citadinos, inclusive em não lugares (AUGÉ:1994) como em uma ciclovia numa avenida periférica de Fortaleza.
O roubo da bicicleta é a imagem do encontro acontecido entre pessoas de distintas condições econômicas, sociais, culturais e políticas. Ignora-se, geralmente, o que as pessoas em situação de roubo pensam, independentemente de ser vítima ou transgressor. Pensa-se de pronto na criminalização desse último e do socorro do primeiro, uma visão imediatista, mas que corresponde na defesa da ordem. Independente do cicloativismo incipiente do proprietário da bicicleta e do desejo pelo consumo impossibilitado ao assaltante, o roubo sinaliza trajetórias de vida completamente distintas, singulares, constituídas de distintas experiências que desconstroem o estigma de criminoso do assaltante. Há experiências pessoais que o levaram a praticar o roubo, como também um estado sócio-histórico produtor da situação de pobreza, que pode vir a motivar ou não o roubo.
De fato há pessoas que sentem prazer ao roubar, o que é visto como comportamento patológico, o que acontece independe de uma pessoa estar ou não em situação de pobreza. Há casos de roubos cometidos por pessoas de diferentes condições sociais, inclusive por proprietários de meios de produção, por pessoas cultas, religiosas e etc. É necessário chamar a atenção para se pensar sobre a pobreza como um estado social historicamente produzido. Não somente pela acumulação de capital do proprietário dos meios de produção através do trabalho dos operários, que aconteceu no século XX com a industrialização brasileira. É preciso levar em consideração o processo de colonização excludente dos grupos humanos que viviam fora da lógica de acumulação de capital. Há aí a produção social da desigualdade, restringindo as possibilidades de sociabilidades aos consumidores ativos, os inativos estão à margem da sociedade, tanto em localização geográfica, como em valores, crenças, trajetórias e etc.
4 A ETNICIDADE NO HORIZONTE DA SOCIOLOGIA DAS AUSÊNCIAS.
Considerar a distinção sociocultural entre as várias populações que hoje convivem no território brasileiro é admitir um processo de invisibilização histórica por categorizações genéricas tais como caboclo, mameluco, cafuzo. A política imperial e republicana de integração nacional também foi de unificação das populações culturais num único agrupamento: o brasileiro. Tal unidade ideológica encobriu as várias nações negras e nativas presentes nesse empreendimento moderno chamado Brasil. O favelado também é produto de categorização genérica que invisibiliza singularidades culturais e encobre a historicidade das pessoas que vivem à margem dos centros urbanos. O sujeito do roubo, que é também o agente da violência contemporânea, está invisibilizado pela categoria de brasileiro. A noção de etnicidade nos dá suporte para pensar o contato entre diferentes grupos étnicos com vidas marginalizadas, principalmente, pela impossibilidade do consumo.
Para tanto é fundamental uma Sociologia das Ausências (BOAVENTURA:2007), cuja episteme possibilita incluir acontecimentos não percebíveis através dos modelos teóricos do Norte. Sob esses últimos, por sua vez, está erigida a cientificidade dos trabalhos no campo das Ciências Sociais no mundo. Romper com tais modelos é direcionar o olhar para a colonização, a inferiorização, a subculturação, a discriminação, a criminalização dos diferentes, de maneira a enfatizar a diversidade cultural. Então, compreender o evento do roubo como um encontro interétnico é estar em busca do desconhecido, das ausências produzidas pela modernidade, pelo desenvolvimento econômico e pela hegemonia do Estado nacional como forma de dominação de territórios.
[...] a etnicidade é um fenômeno universalmente presente na época moderna, precisamente por tratar-se de um produto do desenvolvimento econômico, da expansão industrial capitalista e da formação e do desenvolvimento dos Estados-nações. [...] muitos autores observam agora na modernidade não a chegada da uniformização e do individualismo, mas a era do nacionalismo étnico e do racismo. Que ela seja interpretada ou como um produto da desigualdade de desenvolvimento (Herchter) [...] ou ainda como um produto histórico da economia-mundo capitalista (Balibar & Wallerstein, Murga), a etnicidade é vista nesta perspectiva como um fenômeno essencialmente contemporâneo. (POUTIGNAT: 1998, p. 27 e 28).
A etnicidade, por mais que tenha emergido em países do Norte, tem um caráter sulista ao possibilitar às CS pensar sobre as diferenças culturais e os contatos entre grupos étnicos distintos num contexto de desigualdade social. Tal contexto pode ser compreendido como um estado histórico inerente ao desenvolvimento econômico capitalista. Então, aponto como linha de desenvolvimento teórico sobre violência no Brasil à busca pelas ausências inerentes ao estado de desigualdade social produto da modernidade. Nessa perspectiva, a trajetória de vida dos agentes do crime, bem como o contexto social, cultural e econômico nos quais estão inseridos são terras ainda pouco exploradas pelas CS. A historicidade dos fatos possibilitam fatores explicativos e analíticos que consideram o mundo social como algo em constante construção e mudanças. Portanto, a teoria deve estar em constante renovação metodológica e analítica para conseguir ler a realidade livre de anacronismos. 
5 O ROUBO: TERROR NA MODERNIDADE.
O roubo da bicicleta corresponde a uma prática delituosa que fere o ideal de cidadania, ou seja, a convivência em sociedade por estar infligindo a lei da propriedade privada, marco indelével da civilização: saída da humanidade do estado de natureza. É, portanto, uma prática repugnável pelos cidadãos modernos, embora seja um fato cada vez mais comum na contemporaneidade tanto quanto a compra de mercadorias. Para além do crime, o sujeito da ação é considerado alguém desumano passivo de agressão física. Logo, o linchamento ou mesmo a execução de assaltantes, embora ilegal, revela a face da barbárie encortinada na civilização moderna. O vagabundo rouba por que não trabalha, não frequenta nenhum grupo religioso, muitas vezes é pai de família ou mesmo “de menor” e não tem respeito por nada nem ninguém, assegura o senso comum de fundamentação moralista.
Ora, corresponder à cidadania é possível a todas as pessoas de um país? Há possibilidade de atender aos requisitos de cidadania pelos assaltantes? O que a modernidade cunhou como requisitos para ser cidadão? Seria necessário um estudo mais aprofundado sobre cidadania para expor os requisitos necessários para titular um sujeito como cidadão. Entretanto algumas características são flagrantes: a primeira delas é o trabalho; a segunda é ser pai ou mãe de família; a terceira é ser praticante de alguma religião; a quarta é ser consumidor ou aparentar ser, possuindo mercadorias de distinção social, tais como: automóvel, roupa de grife, relógio de marcas famosas, perfumes, caros e frequentar lugares com pessoas que estejam dentro desse perfil consumidor. Teríamos aí características de um estereotipo do cidadão: trabalhador, pai ou mãe de família, religioso e ser consumidor ativo.
A contradição do sistema capitalista produz uma massa de desempregados ao mesmo tempo em que a produção do lucro, finalidade do capitalista, se dar através da exploração da força da massa de trabalhadores. Então, desempregados são necessários ao desenvolvimento econômico. Como é que desempregados podem consumir? Em famílias que mais de uma pessoa tem trabalho, o indivíduo sem emprego sobrevive, mas não consome livremente. As possibilidades de sociabilidade são reduzidas para ele, ainda mais se tiver filhos. Há várias formas de se inserir na sociedade do consumo (BAUMAN:2001) e a prática do roubo pode ser compreendida como uma estratégia de consumo que fere a ordem vigente da propriedade privada.
Os assaltantes representam o terror na modernidade líquida, segundo Bauman, pois roubam objetos de consumo dos “cidadãos de bem”, pessoas incluídas na sociedade por consumirem. O referido autor ao demonstrar a liquidez das relações, dos valores e da produtividade em diferentes faces do cotidiano da vida humana nas cidades, suscita a compreensão da prática do consumo como sociabilidade. Ideia essa que também está presente nos outros tópicos deste texto. Então, o poder aquisitivo, para além do fetiche da mercadoria, seria a forma pela qual se constrói sentimentos de pertencimento a um grupo e de aceitação por ele de um determinado indivíduo. Há aí um processo de isolamento social das pessoas desprovidas de recursos materiais, pois elas não podem consumir, portanto, são indesejáveis. Os indivíduos postos a margem da vida social sofrem também um processo de invisibilização no cotidiano acelerado da cidade, também é característico da modernidade o acontecimento de uma infinidade de fatos (BACHELARD:2005).
O isolamento social provocado por violência estatal de negligência aos serviços sociais de saúde, da educação, do emprego, da justiça, da habitação, da família, que se desdobram por vezes na ausência do carinho, do amor paterno e materno na trajetória das pessoas em situação de pobreza material, geralmente, favorecem ao comportamento criminoso, sobretudo, ao roubo. Não sei se é o caso do jovem assaltante magrelo, mas acerto ao dizer que a população marginal da cidade enfrenta esses tipos de violência de Estado e que ela está na periferia das cidades. A tendência ao assalto torna a vida da juventude negra de periferia vulnerável, digo isso pelo fato consumado do perfil do assaltante ser: jovem, negro e pobre. Essa juventude é a que mais morre em números oficiais do Mapa da violência (WAISELFISZ:2013).  
O evento assalto ativa a indignação sanguinária dos “cidadãos de bem” que constroem senso de cidadania no almoço ao assistirem os programas policiais, os quais incitam flagrantemente a violência contra os delituosos, contribuindo para a naturalização do extermínio da juventude negra e pobre. Como fator agravador dessa problemática, bem expresso pela passeata Fortaleza Apavorada, o medo de sair nas ruas pela possibilidade de assalto e de ser morto, embora os índices do mapa da violência contrariem isso, integra o processo de isolamento dos “criminosos”. O medo promove a criminalização do convívio com a juventude pobre, por vezes criminosa, e incita o reforço da instituída violência estatal como meio de construir um estado social de “segurança”.
Por que os índices da violência aparecem tanto nos jornais e TVs de Fortaleza? Por que tantos programas policiais em distintos horários, que não competem com as novelas televisivas? Por que quando o tema do jornal da hora do café da manhã/almoço/jantar em TV aberta é segurança o convidado toda vez é um oficial da policia militar e fala das estratégias que a PM está traçando para estabelecer estado de segurança nas regiões de classe média e alta da cidade correspondente? A política de segurança é pautada na ação policial, fundada no policiamento ostensivo que prende e na polícia judiciária que “enquadra” e põe na “jaula”. E o policiamento ostensivo está presente o tempo todo nos lugares de crimes em potencial? Jamais estarão em todos. Embora eles estivessem em toda a parte da cidade, imaginando uma situação fantasiosa, não agiriam sobre o fato dos marginalizados não terem como consumir, não é a política de segurança inclusiva na sociedade capitalista do consumo. Ao contrário a polícia está para estabelecer e preservar a ordem.
Quem vê índice não vê as pessoas representadas por eles, menos ainda suas trajetórias, o sistema de violência física e subjetiva no qual estão inseridos por vezes desde o útero materno. É uma tábua rasa a análise do social por números que simplificam a realidade. A análise policial criminalista é tecnicista e mensura o índice de crimes cometidos, áreas mais perigosas, níveis de criminalidade e etc. As informações produzidas pelo judiciário criminalista repercutem na vida social de maneira a se construir o terror na modernidade. Essa sociedade não admite o roubo, é ele o terror da modernidade como expõe Bauman. Então, os assaltantes são alvos legítimos de punição física e de torturas.
Há uma necessidade de vigilância permanente dos bens materiais que impulsionam estratégias privadas de precaução contra o roubo como desenvolvem as seguradoras (de vida, de carros, de casas, de bens materiais e etc.).
E contra o terror vale o extermínio. Operando de maneira inconsciente o código bárbaro de Hamurabi: “olho por olho, dente por dente”, uma frentista do posto de gasolina da Rua Nereu Ramos, onde esperei a viatura do Ronda, me disse que se fosse governadora, em um ano acabaria com toda essa violência da seguinte forma: “Nesse ponto eu sou bem radical, sou contra a morte das pessoas, mas nesse caso tem que matar”. Não sabe ela que entre os anos de 1980 e 2010 oitocentos mil cidadãos morreram por disparos de armas de fogo, e que
Entre os jovens de 15 a 29 anos esse crescimento foi ainda maior: passou de 4.415 óbitos em 1980 para 22.694 em 2010: 414% nos 31 anos entre essas datas. O alto crescimento das mortes por armas de fogo foi puxado, quase exclusivamente, pelos homicídios, que cresceram 502,8%, enquanto os suicídios com armas de fogo cresceram 46,8% e as mortes por acidentes com armas caíram 8,8%. (WAISELFISZ:2013).
Há extermínio em massa em nosso país, sobretudo, da juventude brasileira e os roubos e crimes no geral continuam acontecendo. Segundo o mapa da violência, 93% dos jovens assassinados por ano são do sexo masculino e desse grupo de vítimas o percentual por raça mostra que morre mais jovens negros vítimas de armas de fogo do que brancos.
No ano de 2010 morreram, vítimas de disparo de arma de fogo, 10.428 brancos e 26.049 negros. Utilizando os dados do Censo de 2010, podemos verificar que as taxas resultantes foram 11,5 óbitos para cada 100 mil brancos e 26,8 óbitos para cada 100 mil negros. (idem).
A média anual de homicídios no Brasil segundo o pesquisador Julio Jacobo Waisefisz chegou ao número de 36,3 mil/ano em 2012. Em números absolutos, esse índice é superior aos 25 mil mortos na guerra da Chechênia (1994-1996), aos 20,3 mil mortos na guerra civil em Angola (1975-2002) e aos 13 mil mortos no Iraque (2003). O Brasil é um país extremamente violento e as vítimas são invisibilizadas pelos índices de homicídios que denunciam o encurtamento da vida dos jovens negros de sexo masculino. Uma das formas de tentar compreender esse holocausto étnico é pensar por vias do consumo, além do contato interétnico, do racismo, circunstâncias medianeiras do conflito.
A população negra brasileira foi historicamente excluída pelo projeto colonial. Apesar do rompimento com a metrópole e com o regime imperial, os republicanos permaneceram com a mentalidade colonial de exclusão social, aprimorando para a criminalização dos negros por práticas religiosas, pelas rodas de samba e etc. Esse processo histórico de negação de cidadania da população brasileira negra foi construindo um lugar social à margem da aristocracia rural brasileira, e da sociedade industrial, ambas com saudosos sentimentos escravagistas. Os negros nem para serem explorados pelos capitalistas serviam, após a lei Áurea, herdando estado de extrema pobreza material e de isolamento social, muito embora a condição de escravo não tenha terminado ao mesmo tempo da sanção imperial.  
Além da exclusão social como regra para o isolamento da população pobre de forma discriminatória e que marginaliza, há a educação no crime com sede na experiência de violência que os assaltantes e homicidas atuais vivenciaram desde crianças no âmbito doméstico, na rua, ou na vizinhança do bairro que viviam e até mesmo na escola que frequentaram. Então, a partir de uma visão de trajetória de vida regida por violência doméstica, comunitária, de classe, policial e etc., que possibilita adentrar a complexidade social da violência e permite localizar o roubo como uma expressão da violência na modernidade.
Não entro no mérito de pensar estratégias para esses jovens não cometerem crimes, pois nessa linha teríamos que visualizar um campo possível de análise para uma vastidão de infrações que são cometidas diariamente, desde um furto de biscoito numa mercearia, aos desvios de verbas milionárias pelo favorecimento político nas instâncias do poder público. Além disso, pensar na inexistência de crimes não é uma utopia, mas uma novela que termina com a cena do casamento heterossexual de pessoas da classe média.
 Outro ponto de reflexão é a drogadição, pois para usar droga, mesmo a “pedra”, é necessária comprar e o poder aquisitivo do viciado não acompanha a “fissura” pelo consumo da mesma. Então, adquirir dívidas no mercado da droga é entrar no corredor da morte, ainda mais para quem não tem perspectivas para consumo, menos ainda de vida futura. Isso fomenta o assalto para alimentar o vício, ou liquidar o saldo devedor de compras anteriores ou ainda ter a própria vida juvenil liquidada por credores do tráfico, antes mesmo do vício ser o homicida daquela.
Observe que na sociedade do consumo se um indivíduo, na compra a crédito, não efetua o pagamento da fatura do cartão, terá o nome direcionado para a lista de inadimplentes do Serasa, empresa privada que se dedica a obter informações econômico-financeiras das pessoas para o consentimento de crédito, e/ou para o SPC (Serviço de Proteção ao Crédito). Com cinco anos os inadimplentes são “perdoados”. No caso dos consumidores de “pedra” o SPC/SERASA tem calibre trinta e oito.
O fato é que a Polícia cumpre o seu papel de prender, registrar a ocorrência e de gerar a estatística. Os BOs – Boletins de Ocorrência – são instrumentos importantes na geração de dados sobre crimes. Diz o senso comum que “a Justiça solta bandido em pouco tempo de cadeia, aí o crime continua a ocorrer”. E o que dizer dos novos criminosos, que jamais foram presos? O que dizer do aumento das mortes por arma de fogo? No mínimo tem gente sendo iniciada na arte do delito. Os crimes de assassinato ascenderam nos últimos trinta anos em mais de 400%. São esses números correspondentes a guerras entre países. Nessa guerra não declarada o alvo para extermínio é a juventude pobre no movimento do tráfico ou fora dele pela violência legal do Estado.
Há estado de calamidade pública declarada para isso? A política do silêncio é a resposta permanente a esse holocausto brasileiro. A prática de roubos, furtos e assaltos passa a ser estratégia de auto-inclusão para consumir, mesmo que seja a droga, ou para possuir um tênis que tanto assistiu na propaganda da TV, ou um celular que tanto almejou. Como essa prática não serve ao capital e atinge a massa de consumidores que têm seus anseios frustrados, os assaltantes surgem como o terror da vida moderna.
O pensamento de Bauman sobre a modernidade suscita a ideia de sociedade do consumo para compreender o mundo social contemporâneo. A liquidez de hoje se opõe a solidez dos tempos dourados do capitalismo, período em que o crescimento econômico sofreu revoluções com o progresso científico produtivo. A especialização do conhecimento, o desenvolvimento tecnológico e hegemonia no mercado internacional.
O assalto rompe com projetos de vida, frustra o desejo do consumo, força motriz do acúmulo de capital liquefeito da era moderna, agindo de forma contrária a cidadania reguladora da sociabilidade pelo consumo. Mas, a prática do assalto constrói outra forma de sociabilidade? Talvez a do crime, que também é movido pelo anseio em consumir, adquirir determinado bem material a qualquer preço. No caso do roubo da bicicleta pelo jovem magrelo tive o meu projeto pessoal de ciclista rompido naquele momento. O senso comum signatário do “apavoramento” pela segurança instável me favoreceu a desistir de pedalar, mas a minha reflexão sociológica me mostrou que devo ser muito grato ao assalto sofrido por ter me favorecido a pensar na violência a partir do roubo da bicicleta que é tão banalizada por ser uma mercadoria, não o lucro.
6 CONSIDERAÇÕES SOBRE INCONCLUSÕES
Dispus-me a tornar um assalto numa reflexão de natureza sociológica alimentada por uma artéria antropológica. Detive-me ao aspecto do consumo como sociabilidade que fomenta o crime à medida que a acumulação de capital impede a concretização de expectativas de consumo de pessoas pobres e menos ainda dos que não tem se quer expectativas de compra. Tal impedimento é resultado tanto de exclusão socio-histórica das populações colonizadas, quanto da produção social do consumo como sociabilidade na modernidade.
Tentei dar visibilidade a marginalização de pessoas e ao consequente mundo invisível em que vivem, tentando fazer uma Sociologia das ausências. Espero contribuir com a compreensão de que a política de segurança deve adotar estratégias e ações tão complexas quanto às problemáticas que se apresentam no campo da violência de forma a não excluir, não criminalizar e com isso não reforçar a invisibilidade sofrida historicamente pelas populações mais pobres e negras.
Que possa, portanto, um dia a política de segurança nos Estados modernos, principalmente, naqueles erigidos pelo processo de colonização, construir estratégias de manutenção da paz social de forma a reconhecer de fato à vida humana em sua pluralidade e as relações conflituosas inerentes a diversidade cultural. Reconhecer também o processo civilizador oriundo do empreendimento colonizador lusitano, o qual gestou a organização social do Brasil, bem como as relações estabelecidas entre as diversas nações indígenas e as populações negras no sistema escravagista. Espera-se, portanto, que instâncias dialógicas de poder sejam estabelecida para a resolução de conflitos ou ao menos a negociação de possibilidades que amenizem a violência. Que esta última acontece não por vias banais, mas por situações extremas.
Para além dos R$540,00! Que venham políticas de emancipação social nos próximos 514 anos!


REFERENCIAS
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BACHELARD, Gastón. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2001.
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GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre - RS: L&PM POCKT, 2011.

IDOETA, Paula Adamo. “Média de homicídios no Brasil é superior à de guerras, diz estudo”. São Paulo: BBC Brasil, 2011. http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/12/111214_mapaviolencia_pai.shtml> (Acessado em 17 de outubro de 2013).

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[1] Esse foi um evento que sai ás ruas de Fortaleza, na região nobre da cidade, para protestar por mais segurança, cobrando mais policiamento nas ruas e bairros.

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