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sexta-feira, 25 de abril de 2014

STF: Presunção de Inocência vale para esferas processuais não criminais (Inconstitucionalidade do art. 170, Lei 8.112/1990 - Servidores Públicos Civis da União)


MANDADO DE SEGURANÇA 23.262 DISTRITO FEDERAL - 23/04/2014. O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI (RELATOR):
Da decisão se extrai o que se segue:
[...]
III - DO OBJETO DO INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE
No contexto de reforma do aparato estatal, a fim de superar o caráter patrimonialista do Estado brasileiro e conferir uma caraterística mais racional e burocrática à Administração Pública, a Constituição de 1934 previu a criação de um órgão de assessoramento ao Presidente da República para questões referentes ao orçamento e aos servidores públicos civis, a qual foi efetivada com a edição do Decreto-lei nº 578/38, o qual instituiu o DASP - Departamento de Administração do Serviço Público.
Sob o mesmo contexto histórico, foi editado o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União (Lei nº 1.711/52), passando o DASP a manifestar-se, em casos específicos, sobre a questão da prescrição das sanções impostas aos servidores.
Posteriormente, por força do disposto no art. 116, III, do Decreto-lei nº 200/67, o DASP adquiriu a competência normativa para, na interpretação de leis que dispusessem sobre funções públicas e servidores civis da União, “expedir normas gerais obrigatórias para todos os órgãos”.
Destarte, a primeira notícia que se tem da normatização do procedimento questionado no presente mandamus remonta à Formulação nº 36 do extinto Departamento de Administração do Serviço Público (DASP), cujo enunciado transcrevo:
“Se a prescrição for posterior à instauração do inquérito, deve-se registrar nos assentamentos do funcionário a prática da infração apenada.”
A Lei nº 8.112/90, que dispõe sobre o regime jurídico único dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais (RJU) – revogando a Lei nº 1.711/52 -, estabelece o seguinte:
“Art. 170. Extinta a punibilidade pela prescrição, a autoridade julgadora determinará o registro do fato nos assentamentos individuais do servidor.”
IV - DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
O julgamento da causa demanda análise sobre a existência ou não de violação do princípio constitucional da presunção de inocência, sediado materialmente no art. 5º, LVII, CF/1988, cuja redação é clássica nas constituições brasileiras: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Conforme raciocínio que desenvolvi sobre o preceito no julgamento do RE nº 631.102/PA, a presunção de inocência é historicamente ligada à condição de réu em processo criminal. Sua origem conecta-se aos brocardos latinos “na dúvida deve o juiz absolver o acusado” (in dubiis reus est absolvendus); “na dúvida, absolve” (in dubiis, abstine) e “na dúvida, sempre devem ser preferidas soluções mais benignas” (semper in dubiis benigniora praeferenda sunt, Gaius, D. 50.17.56).
A reprodução do referido preceito em documentos jurídicos modernos e contemporâneos é praticamente universal. O art. 9º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 já proclamava que “todo o acusado presume-se inocente até ser declarado culpado e, se for indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela Lei” (“Tout homme étant présumé innocent jusqu'à ce qu'il ait été déclaré coupable, s'il est jugé indispensable de l'arrêter, toute rigueur qui ne serait pas nécessaire pour s'assurer de sa personne doit être sévèrement réprimée par la loi”).
Da mesma forma, a Declaração Universal de Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU), em 10/12/1948, em seu art. 11.1, também proclama que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se prova sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para sua defesa”.
Como bem explicita o constitucionalista chileno Humberto Nogueira Alcalá (Consideraciones sobre el derecho fundamental a la presunción de inocencia. In: Ius et Práxis, v.11, n.1, Talca 2005), “o direito à presunção de inocência constitui um estado jurídico de uma pessoa que se encontra imputada, devendo orientar a atuação do tribunal competente, independente e imparcial, preestabelecido por lei, enquanto tal presunção não se perca ou destrua pela formação da convicção do órgão jurisdicional através da prova objetiva sobre a participação culposa do imputado ou acusado nos fatos constitutivos do delito, seja como autor, cúmplice ou acobertador, condenando-o por esse (delito) através de uma sentença firmemente fundada, congruente e ajustada às fontes do direito vigentes”.
A presunção de inocência nas construções pretorianas do STF está fortemente ligada ao problema da aferição do trânsito em julgado da condenação como elemento prévio à formação do juízo de culpabilidade e à perda do status jurídico assegurado aos que não sofreram tais cominações definitivas.
Desse modo, a Corte afirma que “a existência de inquérito e de ações penais em andamento não caracteriza a existência de maus antecedentes, sob pena de violação do princípio da presunção de inocência”. (HC nº 96.618, Relator o Ministro Eros Grau, Segunda Turma, DJe-116, de 25/6/2010).
Do mesmo modo, “o princípio constitucional da presunção de inocência, em nosso sistema jurídico, consagra, além de outras relevantes conseqüências, uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente, por sentença do Poder Judiciário. Precedentes” (HC nº 95.886, Relator o Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, DJe-228, de 4/12/09).
Em termos de Direito Comparado, observa-se que o Tribunal Constitucional de Espanha desenvolveu fortemente sua jurisprudência no sentido de que o conteúdo essencial do direito fundamental à presunção de inocência radica-se na situação jurídica de um indivíduo “até o momento em que uma sentença, pronunciada por um tribunal legal e independente no âmbito de um processo no qual se conservam todas as garantias constitucionais, condena o processado em relação a um ou vários delitos concretos.” (PÉREZ-PEDRERO, Enrique Belda. La presunción de inocencia. In: Parlamento y Constitución. Anuario, nº 5, 2001, p.179-204).
Em sede doutrinária, chega-se ao limite de associar esse princípio com a questão do tratamento respeitoso, digno, humanitário ao indivíduo que se encontra submetido às forças policiais, como se lê no excerto da obra clássica sobre o tema de Antônio Magalhães Gomes Filho (Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 45):
“Sob outro aspecto, o princípio da presunção de inocência, visto como garantia do status do cidadão impõe às autoridades e ao pessoal administrativo em geral, que intervêm nas atividades processuais, tratamento respeitoso à pessoa do acusado, o que não se revela apenas no plano formal e abstrato, mas sobretudo nas pequenas práticas em que seja possível sua assimilação com a condição de culpado; assim, o uso de algemas deve ser restrito aos casos de absoluta necessidade, do mesmo modo que certas praxes, como a de realizar o interrogatório com o réu em pé, merecem ser revistas, em face da regra constitucional.”
Em suma, o debate sobre presunção de inocência é fortemente marcado pela possibilidade de se aplicar aos simples acusados as medidas sancionadoras típicas dos que se encontram em estado de condenação irrecorrível. Como referência, confira-se, na doutrina internacional: Louis Favoreu (La constitutionnalisation du droit pénal et de la procédure pénale, vers un droit constitutionnel penal. In. Droit penal contemporain. Mélanges en l’honneur d’André Vitu. Paris: Cujas, 1989. p.169-209); Luigi Ferrajoli (Derecho y razón: teoria del garantismo penal. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez. 4 ed. Madrid: Trotta, 2000. p.555-559); Alexandra Vilela (Considerações acerca da presunção de inocência em direito processual penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 105) e Américo A. Taipa Carvalho (Sucessão de leis penais. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 1997. p. 315).
[...]
Finalmente, é possível abordar o princípio da presunção de inocência sob o prisma da distribuição das cargas probatórias no processo. O debate é tecido em relação ao ônus probatório ou à presunção da certeza que carrega a acusação, como tem admitido parte da doutrina, com vistas a conferir amplitude ainda maior ao primado da inocência presumida (cf. CARMONA RUANO, Miguel. Prueba de la infracción administrativa y derecho fundamental a la presunción de inocência. In: Jueces para la democracia, nº 9, 1990, p. 22-30).
Nesse contexto, como teve a oportunidade de decidir o Tribunal Constitucional de Espanha, a sanção proveniente dos órgãos públicos, seja de caráter judicial, seja de caráter administrativo, aplicada em decorrência de sentença ou ato administrativo equivalente, “(...) não pode suscitar nenhuma dúvida de que a presunção de inocência rege, sem exceções, o ordenamento sancionador e já de ser respeitada na imposição de quaisquer sanções, sejam penais, sejam administrativas (...)” (8ª Sala do Tribunal Constitucional 76/90, caso Ley General Tributaria).
Na forma expressa pela Corte no julgamento da ADPF nº 144, o princípio da presunção de inocência tem encargo de pressuposto negativo, que refuta a incidência dos efeitos próprios de ato sancionador, administrativo ou judicial, antes do perfazimento ou conclusão do processo respectivo, com vistas à apuração profunda dos fatos levantados e a realização de juízo certo sobre a ocorrência e a autoria do ilícito imputado ao acusado. É corolário do postulado do devido processo legal formal, já que a aplicação de sanção, a privação de bens e a perda de status jurídico devem ser antecedidos de legítimo, regular e dialético processo, que, em regra, se encerra com a prolação de juízos definitivos.
IV. 1 - A PROJEÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR
O impetrante questiona a constitucionalidade do art. 170 da Lei nº 8.112/90, compreendido esse como projeção da prática administrativa fundada, em especial, na Formulação nº 36 do antigo DASP, transcrita, mais uma vez, abaixo:
“Se a prescrição for posterior à instauração do inquérito, deve-se registrar nos assentamentos do funcionário a prática da infração apenada” (grifei).
Volta-se, portanto, contra o registro, no assentamento individual, do fato tipificado como ilícito administrativo, sobre o qual não poderia incidir decisão administrativa definitiva quanto à responsabilidade do servidor por sua prática, visto estar prescrita a pretensão punitiva do Poder Público.
Alega o impetrante violação do princípio constitucional da presunção de inocência, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, VII, CF/88).
Sobre a incidência do princípio, advertiu o Ministro Celso de Mello, no julgamento da ADPF nº 144, que esse gera um estado de “verdade provisória” que inibe a produção de juízos antecipados de culpabilidade, ainda que nas instâncias judiciais superiores, definido como termo da presunção o trânsito em julgado, a partir do qual finda a garantia. Vide:
“O postulado do estado de inocência, ainda que não se considere como presunção em sentido técnico, encerra, em favor de qualquer pessoa sob persecução penal, o reconhecimento de uma verdade provisória, com caráter probatório, que repele suposições ou juízos prematuros de culpabilidade, até que sobrevenha – como o exige a Constituição do Brasil – o trânsito em julgado da condenação penal. Só então deixará de subsistir, em favor da pessoa condenada, a presunção de que é inocente.
Há, portanto, um momento claramente definido no texto constitucional, a partir do qual se descaracteriza a presunção de inocência, vale dizer, aquele instante em que sobrevém o trânsito em julgado da condenação criminal. Antes desse momento – insista-se -, o Estado não pode tratar os indiciados ou réus como se culpados fossem. A presunção de inocência impõe, desse modo, ao Poder Público, um dever de tratamento que não pode ser desrespeitado por seus agentes e autoridades.
Mostra-se importante acentuar que a presunção de inocência não se esvazia progressivamente, à medida em que se sucedem os graus de jurisdição, a significar que, mesmo confirmada a condenação penal por um Tribunal de segunda instância, ainda assim subsistirá, em favor do sentenciado, esse direito fundamental, que só deixa de prevalecer – repita-se – com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória,  como claramente estabelece, em texto inequívoco, a Constituição da República.
(…)
Disso resulta, segundo entendo, que a consagração constitucional da presunção de inocência como direito fundamental de qualquer pessoa há de viabilizar, sob a perspectiva da liberdade, uma hermenêutica essencialmente emancipatória dos direitos básicos da pessoa humana, cuja prerrogativa de ser sempre considerada inocente, para todos e quaisquer efeitos, deve atuar, até o superveniente trânsito em julgado da condenação judicial, como uma cláusula de insuperável bloqueio à imposição prematura de quaisquer medidas que afetem ou que restrinjam, seja no domínio civil, seja no âmbito político, a esfera jurídica das pessoas em geral” (DJe de 26/02/10).
Continua o ilustre Ministro afirmando que a garantia do estado de inocência não se resume ao campo estritamente penal. Ao contrário, referida cláusula constituiria limite a qualquer intervenção estatal prévia direcionada à privação de bens ou direitos ou à aplicação de regras de caráter sancionador, seja qual for o ramo do direito presente. É de se observar novamente:
Nem se diga que a garantia fundamental de presunção da inocência teria pertinência e aplicabilidade unicamente restritas ao campo do direito penal e processual penal.
Torna-se importante assinalar, neste ponto, Senhor Presidente, que a presunção de inocência, embora historicamente vinculada ao processo penal, também irradia os seus efeitos, sempre em favor das pessoas, contra o abuso de poder e a prepotência do Estado, projetando-os para esferas processuais não-criminais, em ordem a impedir, dentre outras graves conseqüências no plano jurídico – ressalvada a excepcionalidade de hipóteses previstas na própria Constituição -, que se formulem, precipitadamente, contra qualquer cidadão, juízos morais fundados em situações juridicamente ainda não definidas (e, por isso mesmo, essencialmente instáveis) ou, então, que se imponham, ao réu, restrições a seus direitos, não obstante inexistente condenação judicial transitada em julgado.
(…)
O que se mostra relevante, a propósito do efeito irradiante da presunção de inocência, que a torna aplicável a processos de natureza não-criminal, como resulta dos julgamentos ora mencionados, é a preocupação, externada por órgãos investidos de jurisdição constitucional, com a preservação da integridade de um princípio que não pode ser transgredido por atos estatais que veiculem, prematuramente, medidas gravosas à esfera jurídica das pessoas, que são, desde logo, indevidamente tratadas, pelo Poder Público, como se culpadas fossem, porque presumida, por arbitrária antecipação fundada em juízo de mera suspeita, a culpabilidade de quem figura, em processo penal ou civil, como simples réu!”

Tem-se, portanto, que a presunção de inocência tem vez, igualmente, no processo administrativo disciplinar.
O dispositivo questionado está assim redigido:
“Art. 170. Extinta a punibilidade pela prescrição, a autoridade julgadora determinará o registro do fato nos assentamentos individuais do servidor.”
A leitura isolada do dispositivo leva à conclusão de que a norma teria o condão apenas de explicitar a necessidade de se registrar, no assentamento individual, o encerramento do processo administrativo disciplinar, sem menção aos fatos sob apuração ou à responsabilidade do servidor por sua prática, não havendo que se falar em inconstitucionalidade do dispositivo por violação ao art. 5º, LVII, da Constituição Federal.
Esse entendimento diz respeito à compreensão do assentamento individual como base material de arquivo e consulta do histórico funcional. Sobre esse aspecto, escreve Mauro Roberto Gomes de Mattos:
“(...) o controle do exercício do servidor é feito em seu assentamento funcional, que na verdade consiste em uma escrituração especial, onde são anotadas todas as ocorrências positivas e negativas bem como até manifestação de vontade do interessado, em relação a seus dependentes ou beneficiários.” (Lei nº 8.112/90 Interpretada e Comentada. 5. ed., revista e atualizada. Niterói: Impetus, 2010. p. 106/107).
Entretanto, uma análise mais detida da norma revela que a anotação, para fins de documentação, é feita independentemente de previsão legal.
A fim de ilustrar essa afirmação, observo que, na Lei nº 8.112/90, não há qualquer dispositivo que determine, dentre outros, o registro de remoção, cessão, redistribuição ou requisição de servidor, participação em cursos de capacitação, promoção na carreira ou concessão de aposentadoria, o que não impede que o Poder Público documente os acontecimentos que repercutam no vínculo estabelecido entre a Administração Pública e o servidor.
Nos Títulos IV e V do RJU - que tratam do “regime disciplinar” e “do processo administrativo disciplinar”-, há apenas duas previsões normativas referentes a registros no assentamento funcional.
A primeira diz respeito ao cancelamento do registro das penalidades de advertência e suspensão, que ocorrerá após o decurso do lapso temporal de 3 (três) e 5 (cinco) anos, respectivamente, salvo a prática de nova infração disciplinar (art. 131 da Lei nº 8.112/90).
A segunda consiste exatamente no dispositivo questionado no presente incidente de inconstitucionalidade, o qual determina “(...) o registro do fato nos assentamentos individuais do servidor” quando reconhecida a prescrição da pretensão punitiva.
Ressalte-se que não há qualquer preceito que imponha o registro da abertura de PAD, da inocência do servidor ou mesmo da aplicação de qualquer sanção disciplinar. E mais, sobre eventual advertência ou suspensão aplicada, o que se determina na lei é o cancelamento do registro, o qual repercutirá na esfera individual do servidor, afastando-se as infrações para efeito de configuração de reincidência (art. 130) ou maus antecedentes funcionais (art. 128).
A formalização do ato sancionatório e o rito procedimental adotado por órgão ou entidade federal para anotação nos assentamentos funcionais é descrito na obra de José Armando da Costa nos seguintes termos:
“Para que possa produzir os seus jurídicos efeitos, deverá o ato punitivo ser publicado no Diário Oficial da esfera de governo respectiva ou no Boletim de Serviço da repartição a que pertencer o funcionário público.” (Teoria e Prática do Processo Administrativo Disciplinar. 3. ed., revista, atualizada e ampliada. Brasília: Brasília Jurídica, 1999. p. 245).
E continua o autor:
“A reprimenda disciplinar gera, além dos efeitos morais, consequências de ordem funcional e patrimonial, razão por que deve a autoridade julgadora, ao editar o ato punitivo, determinar a providência no sentido de que a punição imposta seja levada ao conhecimento do setor de pessoal correspectivo.
Embora sejam silentes tanto o revogado Estatuto dos Servidores Civis da União quanto o atual Regime Jurídico dos Servidores Civis da União, nesse pertinente, acentue que esse dever de comunicação resulta de comando implícito das normas estatutárias, uma vez que, sem essa comunicação, não poderá o setor de pessoal tomar as medidas legais pertinentes.
O Regime Jurídico do Policial Federal [Decreto nº 59.310/66] cataloga essa obrigação no seu art. 389, nestes termos: ‘Da pena aplicada será dado conhecimento ao Serviço do Pessoal, para as anotações cabíveis a sua publicidade no Boletim de Serviço, sempre que a punição não tenha revestido de reserva’” (ibidem, p. 246).
A interpretação sistemática do dispositivo exclui a possibilidade de que a determinação positivada no art. 170 da Lei nº 8.112/90 tenha caráter apenas documental.
É forçoso concluir que a Administração Pública Federal persevera na prática institucionalizada na Formulação nº 36 do extinto DASP e que o art. 170 da Lei nº 8.112/90 tem como finalidade legitimar, apenas em virtude da “instauração de inquérito”, a utilização dos apontamentos para desabonar a conduta do servidor, a título de maus antecedentes, em caso de eventual responsabilização futura por outra infração disciplinar.
A tese é reforçada pelos atos concretos questionados no presente writ, a saber:
a) deliberação positiva sobre a materialidade e a autoria de infração disciplinar pelo impetrante, decorridos quase 4 (quatro) anos desde a instauração da comissão processante, com a aplicação da pena de suspensão, cuja prescrição é de 2 (dois) anos;
b) posterior despacho do Presidente da República determinando, não obstante o reconhecimento da consumação da prescrição antes da decisão condenatória, a anotação “das respectivas transgressões nos assentamentos funcionais do servidor” (fl. 318, grifei).
Aqui reside, no meu sentir, situação de afronta ao princípio da presunção de inocência.
O axioma reflete o entendimento de que a responsabilidade pela prática de qualquer ato tipificado como infração administrativa só resulta de condenação definitiva no âmbito administrativo se se respeita o devido processo legal disciplinar.
Escreve Edmir Netto de Araújo:
“Dentre os princípios gerais do Direito, sobressai aquele segundo o qual ‘ninguém pode ser condenado sem ser ouvido ou sem que lhe seja assegurada a respectiva defesa’ (Nemo inauditus damnari potest). Disso decorre que a sanção deve ser precedida do indispensável procedimento legal (due process of law), no qual eventual condenação ocorra com observância do mencionado princípio, obedecidos ainda todos os requisitos formais-legais no referido processamento, especialmente o contraditório e a ampla defesa, com meios e recursos a ela inerentes (art. 5º, LIV e LV, da Constituição Federal)” (Curso de Direito Administrativo. Saraiva: São Paulo, 2005. p. 856).
Embora o § 1º do art. 169 do RJU prescreva que “[o] julgamento fora do prazo legal não implica nulidade do processo”, essa regra apenas explicita que o prazo do art. 167, caput, do mesmo diploma legal não é preclusivo, ou seja, é fixado na lei como parâmetro para a prática do ato pela autoridade julgadora, após o qual não haverá nulidade, caso praticado.
A norma, no entanto, não afasta a incidência da prescrição da pretensão punitiva do Poder Público (art. 142 da Lei nº 8.112/90) entre a data da instauração do processo administrativo disciplinar e o seu julgamento pela autoridade competente.
Conforme abordado no capítulo II deste voto, 140 (cento e quarenta) dias após a instauração do PAD – 60 (sessenta) dias, prorrogáveis por igual período, para a conclusão do relatório pela comissão processante (art. 152, caput, do RJU), somados aos 20 (vinte) dias para o julgamento pela autoridade competente –, o prazo prescricional da ação disciplinar volta a correr em sua integralidade.
Esgotado o lapso temporal previsto na lei antes que se delibere definitivamente sobre a culpabilidade do agente pela prática da falta disciplinar, ao Poder Público falece o direito de penalizar o servidor e anotar os fatos apurados em sua ficha funcional, pois isso somente é possível após decisão condenatória definitiva.
No campo penal, ainda que se admita, por exemplo, a prisão cautelar no seio do processo penal, o surtimento dos efeitos próprios da condenação irrecorrível demanda o trânsito em julgado da decisão. Destaca-se, nesse sentido, o julgamento proferido por esta Corte no HC 84.0178/MG, de relatoria do Ministro Eros Grau, ocasião em que a Corte decidiu pela inconstitucionalidade da chamada “execução antecipada da pena” - antes do trânsito em julgado. Vide:
HABEAS CORPUS. INCONSTITUCIONALIDADE DA CHAMADA ‘EXECUÇÃO ANTECIPADA DA PENA’. ART. 5º, LVII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ART. 1º, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. O art. 637 do CPP estabelece que ‘[o] recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância para a execução da sentença’. A Lei de Execução Penal condicionou a execução da pena privativa de liberdade ao trânsito em julgado da sentença condenatória. A Constituição do Brasil de 1988 definiu, em seu art. 5º, inciso LVII, que ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória’. 2. Daí que os preceitos veiculados pela Lei n. 7.210/84, além de adequados à ordem constitucional vigente, sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP. 3. A prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar. 4. A ampla defesa, não se a pode visualizar de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária. Por isso a execução da sentença após o julgamento do recurso de apelação significa, também, restrição do direito de defesa, caracterizando desequilíbrio entre a pretensão estatal de aplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão.
5. Prisão temporária, restrição dos efeitos da interposição de recursos em matéria penal e punição exemplar, sem qualquer contemplação, nos ‘crimes hediondos’ exprimem muito bem o sentimento que EVANDRO LINS sintetizou na seguinte assertiva: ‘Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinqüente’. 6. A antecipação da execução penal, ademais de incompatível com o texto da Constituição, apenas poderia ser justificada em nome da conveniência dos magistrados --- não do processo penal. A prestigiar-se o princípio constitucional, dizem, os tribunais [leia-se STJ e STF] serão inundados por recursos especiais e extraordinários e subseqüentes agravos e embargos, além do que ‘ninguém mais será preso’. Eis o que poderia ser apontado como incitação à ‘jurisprudência defensiva’, que, no extremo, reduz a amplitude ou mesmo amputa garantias constitucionais. A comodidade, a melhor operacionalidade de funcionamento do STF não pode ser lograda a esse preço. 7. No RE 482.006, relator o Ministro Lewandowski, quando foi debatida a constitucionalidade de preceito de lei estadual mineira que impõe a redução de vencimentos de servidores públicos afastados de suas funções por responderem a processo penal em razão da suposta prática de crime funcional [art. 2º da Lei n. 2.364/61, que deu nova redação à Lei n. 869/52], o STF afirmou, por unanimidade, que o preceito implica flagrante violação do disposto no inciso LVII do art. 5º da Constituição do Brasil. Isso porque --- disse o relator --- ‘a se admitir a redução da remuneração dos servidores em tais hipóteses, estar-se-ia validando verdadeira antecipação de pena, sem que esta tenha sido precedida do devido processo legal, e antes mesmo de qualquer condenação, nada importando que haja previsão de devolução das diferenças, em caso de absolvição’. Daí porque a Corte decidiu, por unanimidade, sonoramente, no sentido do não recebimento do preceito da lei estadual pela Constituição de 1.988, afirmando de modo unânime a impossibilidade de antecipação de qualquer efeito afeto à propriedade anteriormente ao seu trânsito em julgado. A Corte que vigorosamente prestigia o disposto no preceito constitucional em nome da garantia da propriedade não a deve negar quando se trate da garantia da liberdade, mesmo porque a propriedade tem mais a ver com as elites; a ameaça às liberdades alcança de modo efetivo as classes subalternas. 8. Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade (art. 1º, III, da Constituição do Brasil). É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar plenamente quando transitada em julgado a condenação de cada qual Ordem concedida” (HC nº 84.078/MG, Rel. Min. Eros Grau, DJ de 26/2/10).
Para o processo disciplinar, deve prevalecer esse mesmo entendimento.
Consumada a prescrição antes de instaurado o PAD ou em seu curso, há impedimento absoluto da prática de ato decisório condenatório ou formação de culpa definitiva por atos imputados ao investigado no período abrangido pelo instituto. Por ser matéria de ordem pública, deve a autoridade julgadora, no momento em que instada a se manifestar, reconhecer a estabilização da relação intersubjetiva entre a Administração Pública e o servidor pelo decurso do tempo.
O reconhecimento da prescrição da ação disciplinar acarreta, então, a extinção do PAD desde o exaurimento do prazo prescricional, impedindo que a controvérsia subsista por tempo maior que o lapso temporal estabelecido pelo legislador ordinário no art. 142 da Lei nº 8.112/90, prestigiando-se o princípio da segurança jurídica, que deve ser ressaltado no caso de aplicação de regras sancionadoras e da incidência de seus efeitos. Conservam a sua força, no entanto, os atos válidos praticados antes da incidência da prescrição.
Com base nas premissas fixadas nesse voto, afirmo que o status de inocência deixa de ser presumido somente após a decisão definitiva na seara administrativa, ou seja, não é possível que qualquer consequência desabonadora da conduta do servidor decorra tão só da instauração de procedimento apuratório (sindicância ou PAD) ou da decisão que reconhece a incidência da prescrição antes de deliberação definitiva de culpabilidade.
Compatibilizado com esse entendimento, pode-se afirmar que:
a) a formação de culpa decorre de condenação definitiva, não da execução da penalidade. Em outras palavras, a implicação dos fatos na caracterização de reincidência ou de maus antecedentes decorre de decisão condenatória irrecorrível proferida em regular processo administrativo disciplinar encerrado antes de esgotado o prazo prescricional inscrito no art. 142 da Lei nº 8.112/90, não se podendo erigir a anotação nos assentamentos funcionais como condição necessária para a produção de seus efeitos.
b) a decisão condenatória definitiva interrompe o prazo prescricional iniciado após (i) a instauração do PAD ou da sindicância, ou (ii) a prolação de decisão recorrível. Após esse marco (condenação definitiva), o prazo previsto no art. 142 do RJU volta a correr por inteiro e, uma vez esgotado, consuma-se a prescrição da pretensão executória, a qual - conforme sustentado pela douta Procuradoria-Geral da República, em analogia à ciência do Direito Penal - “somente impede a execução das penas e de eventual medida de segurança, subsistindo os efeitos secundários da condenação, como, por exemplo[,] o lançamento do nome do réu no rol dos culpados, custas, reincidência etc” (fl. 334).
A sanção (art. 127, incisos I a VI, da Lei nº 8.112/90) a que tenha sido definitivamente condenado o infrator, nesse momento, não mais pode produzir seus efeitos primários em razão de omissão do Poder Público quanto ao cumprimento das formalidades do ato concreto sancionador por tempo superior ao prazo prescricional.
Tomem-se as situações a seguir como exemplos das consequências da declaração da prescrição da pretensão executória:
a) impede-se a edição do ato interno que torna pública a pena de advertência aplicada (em geral, portaria). Nesse sentido, a advertência deixa de produzir seu efeito primário, que, enquanto sanção moral, consiste em repreender a conduta do servidor faltoso, que continua no exercício normal de suas funções;
b) na suspensão, a sanção tem efeito, além de moral, pecuniário – pois há supressão do pagamento da remuneração no período em que é determinado o afastamento do servidor de suas funções. Veja-se que, esgotado o prazo para a Administração Pública executar a penalidade, a sanção deixará de produzir seus efeitos moral e pecuniário, com repercussão inclusive para fins previdenciários;
c) a pena de demissão alcança o patrimônio do servidor faltoso não apenas em sua esfera pecuniária, mas também na jurídica, pois ele deixa de ser titular de cargo público. Não praticado o ato formal demissório dentro do prazo legal, esses efeitos não mais podem ser produzidos, muito embora a responsabilidade pelos atos apurados e definitivamente julgados, após garantido o contraditório e a ampla defesa, possam fundamentar mau antecedente funcional.
Em todos os casos, reforço, a inocência deixou de ser presumida desde a condenação definitiva, que não depende de qualquer ordem escrita da autoridade julgadora para ser anotada nos assentamentos funcionais.
Assim, eventual decisão administrativa que declare a prescrição da pretensão executória – proferida, portanto, após válida deliberação condenatória definitiva - não afasta a culpa constituída e a possibilidade de ser anotada nos assentamentos funcionais. Embora a penalidade não possa ser executada, a infração existe, produzindo efeitos quanto à reincidência e aos maus antecedentes.
 V - DISPOSITIVO
Por essas razões, voto pela declaração incidental de inconstitucionalidade do art. 170 da Lei nº 8.112/90. Como consequência, concedo a ordem para cassar, no PAD nº 25000.015495/94-47, a decisão que, embora reconhecendo a prescrição da pretensão punitiva, determinou a anotação dos fatos apurados no assentamento funcional do servidor.

É como voto.

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