Em
situações de injustiça e opressão, a objetividade travestida de uma falsa
imparcialidade, cinismo justificado pelo profissionalismo, é sinônimo de
desonestidade e conivência
Tudo indica
que estamos diante de um segundo caso Amarildo. Na madrugada do dia 17 de
outubro, um jovem de 18 anos chamado Paulo Roberto morreu na favela de
Manguinhos, no Rio de Janeiro. A mãe e outros jovens que testemunharam o
ocorrido acusam os policiais da UPP de tê-lo espancado até a morte. Avisada, a
mãe correu para o local e conseguiu ver os dois últimos suspiros do filho, que
já chegou morto à Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Exatamente como no caso
Amarildo, não só os policiais acusados, mas o comando da UPP e a Polícia
Militar, institucionalmente, negam.
Veja:
Moradores da Rocinha fazem ato em repúdio à inércia da UPP e a onda de violência na favela
Publicado em 07/03/2014
Jornal A Nova Democracia - No início da noite de ontem, moradores da favela da Rocinha fizeram um protesto em repúdio ao estupro e assassinato da jovem Gleice Oliveira, de 18 anos. Ela desapareceu na segunda-feira de carnaval e foi encontrada morta na manhã do dia 5. Manifestantes pararam a Autoestrada Lagoa-Barra nos dois sentidos e culparam a UPP pela onda de crimes que tem assolado os moradores da Rocinha desde a instalação da Unidade de Polícia Pacificadora. Segundo parentes e amigos de Gleice, roubos, assaltos e estupros estão se tornando cada vez mais frequentes. (Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=BYFVe7iehO8)
Amparada
no laudo inicial do Instituto Médico Legal (IML), que diz que as lesões
encontradas no corpo de Paulo Roberto não foram a causa da morte do jovem, a
corporação soltou imediatamente os PMs que haviam sido postos em prisão
administrativa. Também exatamente igual ao caso Amarildo, a grande imprensa já
se esforça para deslegitimar a denúncia da família e a revolta da comunidade.
Só que desta vez, com um grande trunfo a seu favor: diferente de Amarildo,
Paulo Roberto tinha várias passagens pela polícia, estava solto pela justiça,
mas, como se sabe, embora não exista pena de morte neste país, faz parte do
senso comum confirmado pela grande mídia todos os dias que “bandido bom” é
“bandido morto”. Quando digo que “tudo indica”, me referindo à situação de
Manguinhos, quero dizer que, para a imprensa, essa é a condição suficiente para
se dar início a uma pauta jornalística.
Com
exceção honrosa do jornal O Dia – que, aliás, tem se destacado por um sério jornalismo
também na cobertura das manifestações – e do programa de Ricardo Boechat na
Band News, tudo que vi na grande imprensa sobre o caso do jovem de Manguinhos
foram montagens editoriais – inclusive com as técnicas mais simplistas – para
enfraquecer a denúncia. No telejornal da Globo, por exemplo, primeiro foi
apresentada a fala da mãe, denunciando, depois a da polícia, respondendo. Nesse
formato clássico de edição de matéria, que todo jornalista conhece, não há
tréplica e a história se conclui na defesa. Mas, para encerrar com chave de
ouro, na volta das imagens o âncora termina de fato a matéria informando que o
jovem tinha várias passagens pela polícia. Você que não conhece Paulo Roberto
nem sua família, que só conhece favela pelas imagens de televisão e aprendeu a
respirar mais aliviado em saber que “aquela gente” está “pacificada”, não terá
dúvidas sobre o que pensar.
Maquiagem
sensacionalista
Os dias
seguintes, na cobertura em geral, foram ainda piores. Imagens da revolta da
comunidade contra os policiais, apedrejando a sede da UPP e carros de polícia,
tomaram conta dos jornais e telejornais, destacando um “vandalismo” preto e
pobre que aterroriza o senso comum, nubla o fato (a notícia) original e
naturaliza a repressão violenta.
Destaco
também a chamada do G1, portal da Rede Globo, no dia 17 de outubro: “Exame diz
que agressão não causou morte de jovem em Manguinhos, Rio”. O subtítulo é ainda
mais preciso: “Laudo do IML indica que socos não motivaram morte de Paulo
Roberto. Família acusa PMs da UPP de Manguinhos de espancar e matar jovem”. A
notícia é a (não) causa da morte; as lesões (agressão, socos) não viram pauta.
Parece uma anedota conhecida nos cursos de jornalismo, sobre um repórter que
foi cobrir a estreia de um espetáculo de circo e voltou de mãos vazias dizendo
que não teve matéria porque o circo pegou fogo. É uma pena que agora não tenha
graça nenhuma.
Prevenidos
da experiência recente, identifica-se, aqui e ali, um esforço de maquiar esse
discurso pronto de naturalização. Um exemplo é a matéria, do mesmo G1, que
traz, no título, uma frase da mãe do jovem morto: “Não é o primeiro filho que
se enterra em Manguinhos”. A concessão, no entanto, limita-se ao título, já que
a matéria não traz nenhuma apuração, nenhum dado, nenhum questionamento da
polícia sobre a grave denúncia que o título apresenta. Maquiagem
sensacionalista, mais uma vez.
“Sai da
frente”
É a
história que se repete. Aliás, é bom que não se esqueça que o início da
cobertura midiática sobre o caso Amarildo não tinha nada das denúncias que hoje
ajudam a vender jornais. Em texto publicado neste Observatório, comento matéria
do Globo em que o desaparecimento de Amarildo aparece como uma questão lateral,
como o motivo alegado pelos moradores da Rocinha para fazerem uma passeata que
causava transtornos no trânsito, esta, sim, a pauta do jornal. Muito diferente
do apelo sensacionalista (e falsamente investigativo) das manchetes de hoje, a
primeira frase da matéria daquela época, antes de o assassinato se tornar
inegável pelos fatos, resumia a notícia que tinha importância: “Uma
manifestação realizada ontem na autoestrada Lagoa-Barra por moradores da Rocinha
parou o trânsito de bairros como Lagoa, Gávea e São Conrado, dificultando a
volta para casa de quem mora na Barra da Tijuca e arredores”. Agora, com Paulo
Roberto e Manguinhos, não é diferente.
No dia 19
de outubro, junto com cerca de 70 trabalhadores e estudantes da Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz), instituição de ensino e pesquisa localizada em
Manguinhos, fomos em passeata até a favela no momento em que ocorria o velório
do jovem morto. Mas você não viu isso no noticiário. Na véspera, o presidente
da Fiocruz, numa comitiva com integrantes ainda do sindicato da instituição e
outros pesquisadores e diretores, foi à favela conversar com o comandante da
UPP sobre o clima de terror que se instalou na região após uma manifestação
organizada pelos moradores em protesto pela morte do rapaz e na qual uma jovem
foi ferida na perna – com bala de verdade. Mas você também não viu isso no
noticiário.
Uma equipe
de reportagem do SBT já estava em Manguinhos quando chegamos. Mas eles não se
interessaram muito pelas denúncias que diversas pessoas da comunidade faziam
não só sobre a morte do jovem como sobre a prática de violência que, segundo
eles, caracterizaria a política da UPP. Localizado em frente à sede da UPP, o
repórter, eufórico, orientou o cinegrafista a registrar o momento – que não
durou mais de cinco minutos – em que alguns poucos moradores, revoltados,
chutaram e jogaram pedras no contêiner da UPP. Um manifestante – que ele talvez
não soubesse que era pesquisador da Fiocruz – se postou em frente à câmera com
o cartaz que segurava e perguntou por que ele não mostrava aquilo, por que não
se interessava pela reivindicação, por que só queria filmar o breve momento em
que a população reagiu. A resposta? “Sai da frente, filho da puta”, seguida da
afirmação de que ele não precisava que ninguém lhe ensinasse o seu trabalho.
Não precisava mesmo: seu trabalho é mostrar imagens chocantes,
sensacionalistas, descontextualizadas, que sirvam a uma narrativa irreal, mas
reafirmadora do senso comum conservador e violento que legitima a matança de
pobre nesta cidade todos os dias (e neste estado, e neste país). Claro que ele
tinha que filmar também a reação, que era parte da notícia, mas, na forma e na
narrativa, essa parte tem virado o todo.
Modelo de
jornalismo e concepção de notícia
Mas é
preciso entender que esse não é um fato isolado. Tal como a morte de Amarildo –
e, se se confirmar a versão da família e da comunidade, também a de Paulo
Roberto –, não pode ser atribuída apenas a policiais isolados, agentes do mal
em meio a uma bela política do bem, esse comportamento jornalístico não é
específico de um repórter sem ética ou incompetente. Visto no que traz de
generalidade, esse episódio tem muita semelhança, por exemplo, com as
discussões sobre a cobertura das manifestações que têm tomado as ruas do país.
Quando os
defensores de plantão da grande imprensa justificam que as manchetes dos
jornais sempre destaquem o quebra-quebra e não o envolvimento da população com
o protesto; quando colocam a culpa do noticiário nos “vândalos” que, ao
produzirem uma manifestação não-pacífica, forçam uma abordagem negativa da
mídia, estão naturalizando uma concepção de notícia que, no limite, legitima
comportamentos desonestos como o desse repórter do SBT. Por esse argumento, a
revolta da população de Manguinhos, que se traduziu na agressão física a coisas
– um contêiner e um carro – por parte de meia dúzia de moradores, equivale,
como notícia, à morte e ao espancamento de um menino.
Como já
assinalado, merece destaque a séria postura do jornal O Dia que, no dia 19 de
outubro, por exemplo, deu uma página sobre o tema, com o título “PMs soltos,
jovem enterrado”. Destaca-se a foto de um menino apedrejando o carro da
polícia, porque é claro que isso também é notícia e não tem que ser escondido,
mas a legenda vincula os fatos: “Viatura tem vidros quebrados por pedras num
acesso ao Complexo de Manguinhos, ontem de tarde: moradores revelaram detalhes
da morte”. E o texto sobre aquilo que os outros jornais trataram como
vandalismo aparece num box, reduzido ao espaço e lugar que esse fato merece no
contexto mais geral da notícia. O título do box: “Revolta antes e depois do
sepultamento”.
Para que
não fiquemos apenas na superfície de um denuncismo que individualiza os atos, é
preciso discutir o que de palpável existe nesse processo, além do cinismo que
alguns jornalistas da grande imprensa desenvolveram e os óbvios interesses
empresariais das corporações de mídia. Para isso, é urgente que todos os
movimentos sociais que hoje se mobilizam nas ruas – e não apenas aqueles
diretamente ligados à democratização da comunicação – discutam o modelo de
jornalismo e a concepção de notícia que, de tão naturalizada, nos faz não
estranhar que cada fato noticiado na mídia se esgote nele mesmo. Isolando o
fato – objetivo, neutro, aquele que deve falar por si -, a compreensão
profissional de notícia cria obstáculos para associações e contextualizações
que remetam a um mínimo de totalidade.
Acomodados
nesse modelo, muitos jornalistas da grande imprensa aceitam o jogo da
fragmentação sensacionalista – que, literalmente, se limita a causar sensação.
As grandes empresas jornalísticas, confortavelmente acomodadas no lugar
privilegiado de quem controla os principais canais de informação da população
brasileira, mantêm seus interesses particulares promovendo essa concepção de
notícia e de jornalismo como se se tratasse de uma definição técnica e
profissional. E nós, jornalistas e leitores, aceitamos isso.
O policial
gente boa
Vivemos de
tal modo presos num modelo fragmentado de notícia que não é nenhum
constrangimento para esses veículos de comunicação ficarem no meio do caminho
da informação. Eles podem, exemplo, informar que durante a tortura do pedreiro
da Rocinha os policiais perguntavam sobre as armas do tráfico sem concluir –
informativamente – que isso obviamente configura uma prática de
“interrogatório” a serviço dos objetivos anunciados da UPP e da política que
eles representam – e não a manifestação de um ódio pessoal de dez policiais.
Como descolar isso da própria política de segurança pública do Rio de Janeiro e
dos seus grandes coordenadores, José Mariano Beltrame e Sergio Cabral? Para o
jornalismo atual, é fácil, e o pior é que já nos acostumamos com ele.
No caso
específico de Amarildo, seria “injusto” dizer que a associação da violência
policial com a política mais ampla de segurança não apareceu em momento algum.
No dia 5 de outubro, por exemplo, o Globo publicou matéria com o título
“Beltrame: caso Amarildo não arranha imagem das UPPs”. A matéria se referia a uma
fala do secretário de segurança do Rio de Janeiro durante evento numa escola
pública. Conforme registra o texto, entre outras coisas menos comprometedoras,
Beltrame defendeu que “o que nós temos hoje lá [na Rocinha] é muito melhor do
que havia no passado” e que “a polícia atuou lá como atua em qualquer lugar da
cidade. A morte de uma pessoa é muito difícil, mas antes a gente não conseguia
entregar uma intimação lá dentro”. Não sei se entendi bem, mas parece que o
secretário de segurança acha que ser torturado pela polícia é melhor do que ser
torturado pelo traficante. E que as pessoas deveriam ficar felizes porque
agora, além de serem torturadas e mortas, elas podem receber nas suas casas
intimação da própria polícia. É uma pena que o jornalista do Globo que fez a
matéria não fosse dado a ironias.
Como o
tema aparece num evento cujo protagonista é o secretário, e não como uma pauta
que questione a política de pacificação (mais universal) a partir de um fato
particular, o jornal não precisou ouvir o tão famoso “outro lado”. Até, porque,
convenhamos, nesse caso, é fácil acreditar que não existe um outro lado. Tendo
como pano de fundo a naturalização de que para favelado só existe a escolha
entre a arma do traficante e a arma da polícia, a população residente dessas
comunidades ‘pacificadas’ – o outro lado esquecido – não é mais ouvida sobre a
política que deveria beneficiá-la. Essa mesma população foi destaque nas
páginas dos jornais quando se anunciou a instalação das primeiras UPPs, e havia
uma forte expectativa em relação aos seus benefícios.
Hoje, um
balanço que apurasse as denúncias de morte e violência e ouvisse – de verdade –
moradores de diversos segmentos, diferentes faixas etárias, inclusive aqueles
ligados a movimentos sociais locais, feito com a autonomia que a apuração
jornalística deve ter e não a partir da indicação da própria polícia, talvez
apontasse avaliações menos otimistas do que as belas fotos do policial gente
boa jogando bola com as crianças da favela. Pelo menos foi isso que eu e todos
os outros que estavam comigo ouvimos dos moradores de Manguinhos.
O atributo
do embrutecimento
É curioso,
por fim, notar que essa fragmentação sensacionalista da notícia tem sempre um
lado: o da ordem. Teria causado bastante sensação também a imagem do rosto
machucado de Paulo Roberto no velório ou do círculo de crianças, pobres e
pretas, que rodeavam o caixão numa tristeza muda, quem sabe vendo o seu próprio
destino projetado ali. Não vi essas imagens no noticiário. E, para falar a
verdade, também não vi pessoalmente. Não tive coragem de entrar na sala onde o
corpo estava sendo velado. E o fato é que, como jornalista, eu deveria me
envergonhar disso.
Com esse
relato facilito a vida dos defensores de plantão da grande imprensa, que podem
apontar a parcialidade da minha crítica, vítima de um envolvimento emocional
que não condiz com a objetividade necessária da profissão. Dou-lhes razão e
confesso outros crimes: chorei ouvindo o depoimento da mãe do jovem morto; quis
fugir correndo deste mundo quando ouvi os gritos de revolta do irmão de Paulo
Roberto, que quebrou o pouco protocolo que havia com a sua indignação sentida;
quando cheguei em casa, quis que meu filho não dormisse aquela noite. De fato,
não estou preparada para o profissionalismo que essa grande imprensa requer. E
ainda bem.
Em
situações de injustiça e opressão, essa objetividade travestida de uma falsa
imparcialidade, esse cinismo justificado pelo profissionalismo, é sinônimo de
desonestidade e conivência. Meu consolo, como militante de uma outra
comunicação e um outro modo de se produzir notícia, é que esse não é um
pré-requisito para ser jornalista; é apenas o atributo necessário do
embrutecimento, construído dia-a-dia, por um tipo específico de imprensa: uma
imprensa que não pega em armas, mas que, no Brasil, ajuda a matar.
***
Por Cátia
Guimarães, no Observatório da Imprensa.
Original:
A imprensa que ajuda a matar
Cátia
Guimarães é jornalista e doutoranda em Serviço Social
Fonte:
http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/10/a-imprensa-que-ajuda-a-matar/
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