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domingo, 22 de dezembro de 2013

Trabalho e trabalhadores no Brasil (só no Brasil?) de hoje

27 de Novembro de 2013 · Marcelo Badaró
Portugueses e portuguesas enfrentam hoje uma taxa de desemprego de dois dígitos (17% segundo os dados oficiais, sempre subestimados, a taxa real aponta para 25%) e uma situação de regressão nas condições de vida social minimamente digna, conquistadas a partir do 25 de abril. É nesse contexto social que ganham espaço as avaliações sobre a irreversibilidade do quadro atual de desemprego e precarização das relações de trabalho e o diagnóstico de que as únicas saídas são as políticas sociais compensatórias, do tipo RSI (Rendimento Social de Inserção) e RBI (Rendimento Básico Incondicional).
Pode ser interessante resgatar alguns elementos do quadro brasileiro para pensar parâmetros e evitar armadilhas desse tipo de debate, respeitando, por certo, as especificidades de trajectória histórica (especialmente a recente, visto que Portugal superou a ditadura com um movimento revolucionário, algo muito distinto da transição pactuada pelo alto no Brasil). Nos anos 1990 e princípios da década de 2000, no Brasil, o desemprego atingiu patamares similares aos de Portugal hoje. 12,6% foi a taxa oficial de desemprego em 2002. Naquele momento, os diagnósticos eram sempre pessimistas, apresentando-se o desemprego recente como “estrutural”, irreversível e mesmo “necessário”, segundo os liberais mais sinceros, para garantir “competitividade” à produção nacional frente a um mercado mundial globalizado.

As receitas para garantir maior “empregabilidade” para a força de trabalho nacional eram variadas: cursos de reciclagem e formação profissional para procurarem emprego em outros ramos económicos; “vestir a camisa da empresa” e contribuir para o desafio da elevação da produtividade, demonstrando “flexibilidade”, para os que ainda conservavam o emprego; “empreendedorismo”, para os demitidos que deveriam buscar sustentar-se sem emprego regular; etc. Na prática, os governos avançaram sobre direitos dos trabalhadores, desregulamentando direitos e instituindo aberrações na legislação trabalhista, como a regulamentação do “banco de horas” (eliminando a necessidade de pagamento de horas extra em dobro e entregando às empresas o controle completo do calendário do trabalhador), ou a legislação da Participação nos Lucros e Resultados (que longe de distribuir lucros entre os trabalhadores, representou a criação de uma parcela da remuneração livre dos encargos sociais).
As empresas levaram adiante programas de “rescisão voluntária”, ampliaram a gama de actividades terceirizadas e reduziram salários e direitos. Os sindicatos, em sua imensa maioria, aceitaram a lógica e passaram a reivindicar o “menos mal”, ou seja, a retirada “negociada” de direitos (aceitando a inevitabilidade da retirada) para as parcelas cada vez menores de trabalhadores que conservavam o emprego formal. Mesmo a central sindical que surgira das lutas memoráveis dos anos 1980 (a CUT) aceitou as novas regras do jogo e foi remunerada para isso, na medida em que passou a manejar somas expressivas de recursos (oriundos do Fundo de Amparo ao Trabalhador, criado para garantir o seguro desemprego) para oferecer cursos de reciclagem profissional aos desempregados.
Diante da ameaça do caos que tal estado de regressão social inaugurava, o Estado actuou em duas frentes: dura repressão sobre os movimentos sociais que teimaram em resistir e intensa e mortífera vigilância policial sobre os espaços de concentração da miséria (as favelas e periferias das grandes cidades) por um lado; e uma tímida política social focalizada, nos moldes preconizados pelos organismos financeiros internacionais, para aliviar a miséria absoluta dos mais pobres entre os mais pobres, com políticas como o “Bolsa Escola” (uma renda mínima, muito mínima, para famílias miseráveis com crianças na escola), criada no governo de Fernando Henrique Cardoso.
A década de 2000 representou uma alteração nesse quadro. A situação da economia internacional favorável à exportação de commodities, a forte vinculação da economia brasileira à economia chinesa pelo caminho da troca desigual (commodities alimentícias e energéticas saindo daqui e produtos industrializados vindo de lá) e a pequena recuperação do mercado interno (movido a crédito fácil, embora caro), criaram o terreno propício para que um governo eleito como opositor ao neoliberalismo fosse eleito e governasse com alguma folga. Mas governasse em que direção? Sobre o terreno arrasado da década anterior, houve um recuo do desemprego, ampliação das políticas sociais focalizadas (como o RSI) para um patamar de massas e uma tímida reversão do quadro de desigualdade crónica da distribuição de renda no país (ao menos quando o novo período é comparado com a década anterior). Isso foi possível, entretanto, sem qualquer reversão significativa na lógica das políticas anteriores. Direitos dos trabalhadores continuaram a ser retirados (no primeiro semestre de seu governo, Lula da Silva “reformou” a Previdência Social, retirando mais direitos dos já trabalhadores já reformados e dos futuros); os novos postos de trabalho criados possuem como característica comum os baixos salários; o processo de terceirização (e a precarização mesmo dos empregos formais) é cada vez mais amplo; as políticas sociais focalizadas diminuíram a miséria absoluta, mas estão longe de criar condições para a vida digna; a repressão aos poucos movimentos que ainda resistem ampliou-se e o controle policial sobre as concentrações urbanas de trabalhadores pauperizados e precarizados tornou-se cada vez mais intenso e violento; e os sindicatos, bom, os sindicatos tornaram-se ainda mais dóceis, com as centrais sindicais (agora já são seis as centrais reconhecidas pelo Ministério do Trabalho) gravitando cada vez mais em torno do Estado e engordando seus cofres com a contribuição sindical compulsória descontada de todos os trabalhadores – sindicalizados ou não.
Em números. Os dados oficiais de desemprego calculam em 5,2% a taxa de desemprego em Outubro passado. Já os dados, mais próximos do real, apresentados pelo DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos) são de 8,1% de desemprego aberto em Setembro (10,3% de desemprego total). A formalização do contrato de trabalho no sector privado no Brasil é medida pela assinatura da “Carteira de Trabalho” pelo empregador. Esse indicador subiu de 39,7% dos ocupados em 2003 para 49,2% em 2012. Já os contribuintes para a Previdência Social somavam cerca de 54% dos trabalhadores ocupados em 2011. Somando-se os quase 50% de ocupados sem carteira ou contribuição previdenciária, ou seja, sem cobertura de direitos do trabalho, aos cerca de 10% de desempregados, temos uma ideia do grau de precarização das relações de trabalho e fragmentação da classe trabalhadora brasileira. Mas, é preciso agregar ainda outros dados. Calcula-se entre 8 e 10 milhões (numa População Economicamente Activa de 105 milhões de pessoas em 2011) os trabalhadores terceirizados, ou seja, contratados formalmente, mas através de empresas prestadoras de serviços para as empresas em que efectivamente trabalham, com salários menores e menor cobertura de direitos.
Já quanto à renda, os dados de rendimento mensal médio da população com mais de dez anos de idade ocupada indicam que, em 2011, quase 30% recebia até um salário mínimo (8,29% recebendo menos que meio salário mínimo), 37,29% recebiam entre um e dois salários mínimos e 14,9% recebiam entre dois e três salários mínimos, ou seja, 82% dos trabalhadores ocupados recebiam até 3 salários mínimos, e menos de 3% recebiam mais de 10 salários mínimos. Aponta-se que o salário mínimo no Brasil cresceu em termos reais, desde 2003, mas tal crescimento apenas retomou seu poder de compra dos anos 1980, quando este já havia sofrido duas décadas de recuo. Considerando-se que o salário mínimo nominal em 2013 está fixado em R$ 678,00 (cerca de 220 euros no câmbio actual) e que para atender ao que define a legislação seria necessário um salário mínimo de R$ 2.860,21, segundo os cálculos do DIEESE, mais de 80% da classe trabalhadora ocupada no Brasil recebe menos do que o necessário para a reprodução minimamente digna de sua existência. Os dados sobre distribuição de renda apurados pelo Censo de 2010 indicam que apesar de pesquisas apontarem quedas sucessivas na desigualdade de renda no Brasil, tais quedas não representaram de fato um avanço significativo em direcção à superação da desigualdade extrema, que ainda é a marca. Afinal, segundo esses dados, os 10% mais ricos no País têm renda média mensal 39 vezes maior que a dos 10% mais pobres. Assim, em 2010 os 10% mais pobres ganhavam apenas 1,1% do total de rendimentos. Já os 10% mais ricos ficaram com 44,5% desse total.
É face a esse quadro de precarização das relações de trabalho, desigualdade gritante e pauperismo elevado que se entende o “sucesso” da política do “Bolsa Família”. O programa, voltado para famílias com renda per capita mensal média de R$ 70,00 (pouco mais de 20 euros), atende hoje a 13,8 milhões de famílias. Ou seja, em torno de 50 milhões de pessoas (cerca de ¼ da população total do país) são atingidas por uma política de governo que paga mensalmente um pequeno benefício, que varia conforme o número de crianças na família e outros fatores (seu valor médio era de R$ 149,00 no primeiro semestre de 2013).
Em síntese, acredito que o exemplo brasileiro seja interessante porque demonstra claramente que uma base de devastação social a partir dos anos 1990, criada pelo desemprego elevado, pelo avanço da contratação precária, pela retirada de direitos do trabalho e pela domesticação das entidades sindicais, criou as condições para, em um quadro internacional distinto, uma retomada do crescimento económico nos últimos dez anos (mas a crise já está aí a bater nossas portas). Porém, ainda que gerando a diminuição do desemprego e a elevação do trabalho formalizado, isto se deu em meio a um quadro de direitos trabalhistas restringidos e salários extremamente rebaixados. Ou seja, trata-se de mais uma ilustração perfeita, numa economia periférica do século XXI, da “lei geral da acumulação capitalista”, formulada por Marx em O Capital, que enxergava claramente como “a acumulação capitalista produz constantemente (…) uma população trabalhadora adicional relativamente supérflua ou subsidiária, ao menos no concernente às necessidades de aproveitamento por parte do capital”. Da mesma forma, que explicava que “o sobretrabalho da parte ocupada da classe trabalhadora engrossa as fileiras de sua reserva, enquanto, inversamente, a maior pressão que a última exerce sobre a primeira obriga-a ao sobretrabalho e à submissão aos ditames do capital.”
Porém, como o próprio Marx adiantava, as “leis” da acumulação capitalista, são tendências, sempre sujeitas a contra-tendências. A mais importante delas decorre das lutas de classes. Em diversos momentos históricos as lutas da classe trabalhadora puseram freios, ou mesmo apontaram alternativas societárias diametralmente opostas, à contínua produção de miséria gerada pela acumulação capitalista. Que os trabalhadores brasileiros, portugueses e do mundo todo se lembrem disso e partam em busca de algo mais que o “menos pior”, seja em cenários de crise aberta ou de crescimento dependente e limitado.
Por Marcelo Badaró

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