(Sáb, 17 Nov
2012, 6:00)
A velha
máxima popular de que "a sua liberdade termina onde começa a do
outro" pode servir para diversas situações cotidianas, mas, em se tratando
do equilíbrio entre os direitos de personalidade e as relações de trabalho, ela
se mostra bastante falha. A liberdade de pensamento se apresenta em diversas
vertentes: liberdade de consciência, de crença, de manifestação do pensamento e
de expressão.
Agora imagine
tudo isso multiplicado pelo número de colegas com quem quase todos convivemos
diariamente no trabalho. Onde começa a "minha" e onde termina a
"sua" liberdade? No ambiente de trabalho, que espaço tem o
trabalhador para manifestar suas convicções? Até que ponto ele pode livremente
transferi-la para o serviço executado sem interferir no direito alheio? Qual o
limite das informações que o empregador pode pedir no processo seletivo, a fim
de verificar o "perfil" do trabalhador e sua adequação para o cargo?
As respostas, naturalmente, não são fáceis nem definitivas, e exigem a
ponderação de diversos valores e garantias constitucionais.
A liberdade
de pensamento é caracterizada como direito da personalidade. Trata-se de
garantia individual que protege a sociedade contra o arbítrio e as soluções de
força. O ministro do Tribunal Superior do Trabalho Alexandre Agra Belmonte,
porém, observa que essa liberdade pode sofrer restrições na relação de trabalho,
desde que se levem em conta três critérios: a necessidade da regra imposta, a
adequação dessa regra e a proporção em que ela é imposta. "O principal
critério é que a liberdade de pensamento e expressão do empregado não pode
atentar contra a finalidade principal da empresa", explica. "Para
além disso, é livre e protegida contra qualquer regulação abusiva".
Na prática,
entretanto, nem sempre esses critérios são respeitados – tanto por patrões
quanto por empregados. E a discussão sobre os limites chega à Justiça do
Trabalho, que tem de decidi-los com base em critérios objetivos. A maioria dos
casos trata da dispensa por justa causa, sob alegações diversas. Em alguns, o
trabalhador pede também indenização por dano moral.
Canabinoide
na urina
Em 2003, um
operador de plataformas petrolíferas em Macaé (RJ) foi dispensado pela
Transocean Brasil Ltda. O motivo: em seu exame de urina foram encontradas
substâncias canabinoides, levando a empresa a presumir que ele usaria maconha
no local de trabalho.
A
empregadora, uma das maiores do ramo de perfuração de petróleo offshore, alegou
que seus empregados, na admissão, são informados de que, conforme convenção
coletiva, o uso de entorpecentes e bebidas alcoólicas implicaria demissão por
justa causa. Também de acordo com a convenção, os empregados poderiam ser
escolhidos aleatoriamente para a realização de exames que constatam a presença
dessas substâncias.
"Esse
tipo de exame pode ser pedido se seus resultados tiverem relação direta com a
função exercida pelo trabalhador", explica o ministro Alexandre Agra
Belmonte. "É o caso, por exemplo, de um hospital que exige exame de HIV
para pessoal da área de enfermagem. Nessas circunstâncias, a exigência não é
abusiva".
Esta foi a
principal alegação da Transocean, que disse, na contestação, que as atividades
exercidas numa plataforma de exploração de petróleo exigem atenção total de
quem as desempenha. Daí, portanto, a intolerância com "qualquer substância
entorpecente que possa alterar ou retardar os sentidos do trabalhador, já que
os reflexos diminuem e o torpor pode conduzir o empregado a algum tipo de erro
nas operações, com consequências fatais".
A 8ª Vara do
Trabalho de Vitória (ES) julgou improcedente o pedido de descaracterização da
justa causa por mau procedimento (artigo 482, alínea "b") ajuizado
pelo operador, acolhendo os argumentos da empresa. O TRT da 17ª Região, porém,
reformou a sentença, com o entendimento de que a dependência da maconha é
considerada doença, e que a empresa não poderia "descartar o empregado
[que possuía excelente histórico funcional] e estigmatizá-lo de viciado"
por ter presumido, a partir da presença dos canabinoides, que a droga estaria
sendo consumida no trabalho.
O TST, ao
examinar recurso de revista da Transocean, manteve a condenação ao pagamento de
verbas rescisórias. O relator, ministro Alberto Bresciani, afastou a alegação
de que a decisão do TRT desconsiderou a convenção coletiva e destacou que o
entendimento estava amparado em fundamentos constitucionais como a dignidade da
pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa,
"limitadores da negociação coletiva".
Discriminação
estética
Barba,
cabelo, bigode, tatuagens, piercings e roupas são formas de expressão da
personalidade – e, muitas vezes, também são fonte de atrito no ambiente de
trabalho. Nesses casos, as regras de vestuário devem ser explicitadas na
admissão. Em Poá (SP), a caixa de um supermercado conseguiu reverter a dispensa
por justa causa. Na versão da empresa, a demissão foi por desídia, pelo excesso
de faltas injustificadas. Na da trabalhadora, pelo fato de usar piercing no
nariz, depois de três suspensões por não retirar o adorno.
A caixa disse
que o manual de recursos humanos que permitia o uso de acessórios "desde
que com bom senso". Segundo alegou, com a apresentação de fotografias, o
piercing que usava "é tão pequeno que não se percebe com um simples
olhar". A interpretação da empresa, que confirmou as advertências, embora
negando ter sido este o motivo da dispensa, era em sentido contrário. "É
proibida a utilização de tal objeto em serviço, conforme é do conhecimento da
empregada", afirmou na contestação.
Como não
provou a alegação de que o motivo da justa causa foram as faltas
injustificadas, o supermercado foi condenado a pagar todas as verbas
rescisórias à ex-caixa. A Primeira Turma do TST, ao negar provimento a agravo
de instrumento da empresa (AIRR-2300-66.2008.5.02.0391), citou trechos do
acórdão do TRT da 2ª Região, segundo o qual, além da ausência dos controles de
horário, a prova oral foi inconclusiva quanto às faltas. "Isso porque uma
testemunha assegura que se originaram de punições pelo uso de piercing, e que,
portanto, não se pode cogitar de negligência", diz o acórdão. O relator do
agravo, ministro Vieira de Mello Filho, ressaltou que a conclusão do Regional
foi a de que não havia elementos para corroborar a desídia, a indisciplina e a
insubordinação capazes de motivar a dispensa, e a condenação foi mantida.
Antissemitismo
Outro
processo relativo à dispensa por justa causa envolveu um vendedor da Ironman
Comércio de Artigos Desportivos Ltda., do Paraná, demitido por desenhar uma
suástica num papel depois de ser advertido pelo patrão, judeu. A sentença
reverteu a justa causa por entender, a partir dos depoimentos, que o
trabalhador era "pessoa de baixo nível cultural" e não tinha
conhecimento do efetivo significado do nazismo e do símbolo da suástica.
O TRT do
Paraná, porém, a restabeleceu. O acórdão admitiu que a questão "adentra
uma zona nebulosa", mas considerou haver indícios "mais do que
suficientes" para a dispensa motivada, pois o empregado teria agido
deliberadamente para ofender a honra do empregador.
A relatora do
recurso de revista no TST (RR-510739/1998.4), desembargadora convocada Eneida
de Araújo, manteve a justa causa e destacou que a tipificação da injúria, no
âmbito trabalhista, "não exige os mesmos rigores do direito penal",
sendo suficiente a culpa do empregado. "Nas relações de trabalho, não se
pune o autor com pena privativa de liberdade", afirmou. "Apenas
reconhece-se a prática de ato incompatível com a continuidade da relação de
emprego", afirmou.
A
desembargadora lembrou que o gesto do vendedor foi praticado em serviço e
dirigido ao patrão. "A lesão dirigiu-se a um aspecto intelectual,
consubstanciado no sentimento da raça, das origens, do holocausto a que foi
submetida toda uma nação, a qual o empregador integra", ressaltou. "O
símbolo da suástica teve o significado de um revide, causando constrangimento,
vexame e tristeza, que não podem ser ignorados pela gravidade de seu símbolo
histórico ou anti-histórico".
"Sex
tape"
Outra
dispensa por justa causa revela a complexidade dos casos que envolvem a
repercussão dos atos privados no ambiente de trabalho e a sobreposição de
ambientes (virtual, de trabalho, pessoal). Nesse exemplo, o trabalhador
demitido foi um técnico de qualidade do Consórcio Santo Antônio Civil,
responsável pela construção da Hidrelétrica de Santo Antônio, em Rondônia.
Segundo sua versão
dos fatos, "num momento íntimo do namoro" com uma colega de trabalho,
os dois gravaram uma cena de sexo com o celular dela, "em local
particular, longe do canteiro de obras". Uma colega da namorada pediu o
celular emprestado "para escutar música" e, sem seu consentimento,
copiou o vídeo e o divulgou no local de trabalho.
Nos dias
seguintes, segundo contou, a vida de sua namorada "virou um inferno, com
até ameaças a sua integridade física". Menos de duas semanas depois, o
técnico foi demitido por incontinência de conduta, por ter "propagado um
escândalo dentro da obra" com a divulgação do vídeo, que "paralisou
várias frentes de trabalho".
Na sentença
que desconstituiu a justa causa, o juiz observou que a solução do caso não
estava na conduta do empregado de gravar as cenas de sexo, tendo em vista que a
intimidade e a vida privada são invioláveis. "Tampouco cabe aqui
questionar ou reprovar o voyeurismo daqueles que tiveram a curiosidade de ver o
vídeo e de propagá-lo", afirmou.
O ponto
crucial, como ressaltou, estava na verificação ou não de prova da conduta
alegada pelo consórcio para a dispensa por falta grave. A conclusão foi a de
que não havia provas de que a divulgação partira do trabalhador, nem
confirmação das testemunhas. Além das verbas rescisórias, o consórcio foi
condenado a indenizar o técnico por dano moral, ao atribuir-lhe a
responsabilidade pelo vazamento da gravação, "maculando sua imagem
funcional e seu bom nome".
A conclusão
foi mantida pelo TRT da 14ª Região (RO/AC), e o consórcio não teve sucesso no
agravo de instrumento ao TST (AIRR-2086-80.2010.5.14.0000). A relatora,
ministra Delaíde Miranda Arantes, destacou que os fundamentos do TRT – a
inexistência de investigação sobre a autoria da divulgação e a situação
vexatória pela qual o empregado já passava ao ser demitido – só poderiam ser
desconstituídos mediante reexame das provas, vedado pela Súmula 126 do TST.
A segunda
parte da matéria especial, que será publicada amanhã (18), examina com mais
profundidade a questão da liberdade de pensamento e expressão sob a ótica das
novas tecnologias. Também amanhã, o ministro Alexandre Agra Belmonte aborda, em
entrevista, as diversas vertentes do tema.
(Carmem Feijó e Ricardo Reis / RA)
Fonte: TST
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