Será que existe
interesse na regulamentação desse trabalho? A medida é defendida por
educadores, psicólogos, assistentes sociais e diversos profissionais que
conhecem, de perto, as condições a que são submetidas crianças e adolescentes
que sonham em ingressar no mundo artístico. A angústia durante a seleção de
candidatos, a frustração dos excluídos, a pressão durante as gravações e
exibições ao vivo, as longas jornadas e os prejuízos na frequência e rendimento
escolares são vivenciados diariamente por milhares de crianças e adolescentes
brasileiros.
Para o juiz do
Trabalho aposentado e professor de Direito Oris Oliveira impõe-se a
regulamentação do trabalho artístico infantil. "A complexidade é tão
grande e os problemas emergentes tão delicados que não se pode se contentar com
remeter-se às normas celetistas ou às genéricas do ECA", fazendo
necessária uma "regulamentação elaborada com visão multidisciplinar da
matéria".
Mas ele ressalta que
a normatização não exclui a responsabilidade da família no acompanhamento dos
menores que se aventuram na área artística. "Não se deve deduzir ser
dispensável a atuação do poder-dever familiar a tudo que diga respeito ao
trabalho dos filhos. Os pais devem previamente se informar sobre onde os filhos
vão trabalhar, em que condições, assisti-los na celebração do contrato, exigir
sua extinção se prejudicial a qualquer título."
O desembargador do
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Siro Darlan defende a importância de
conciliar o texto legal com a realidade cultural e social do país.
"Criança tem o direito de estudar e brincar; adolescente de estudar e ser
preparado para o exercício pleno da cidadania e isso inclui a educação para o
trabalho, sob pena de ser alijado do mundo competitivo." Ele alerta para o
fato de que privar crianças de direitos básicos, como educação e lazer,
contribui para o aumento das diferenças de oportunidades profissionais entre os
mais pobres e os mais ricos.
Congresso
Pelo menos uma
proposta legislativa sobre o tema tramita no Congresso Nacional. O Projeto de
Lei nº 83/2006, de autoria do senador Valdir Raupp, está na Comissão de
Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal. O PL fixa a
idade mínima de 14 anos para o trabalho como ator, modelo e similares, com
autorização apenas da família ou do representante legal. Já os menores de 14
anos necessitariam de autorização judicial para o trabalho.
Mas a proposta ainda
não é suficiente, na avaliação do procurador do Trabalho Rafael Marques.
"É um PL tímido, que peca por não incluir aqueles parâmetros de proteção
dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes", avalia.
A competência para
expedir alvarás de trabalho infantil prevista no artigo 406 da CLT é alvo de outro
projeto, desta vez da Câmara dos Deputados. Em maio último, o deputado Manoel
Júnior (PMDB-PB) propôs o Projeto de Lei nº 3.974/2012, que pretende transferir
à Justiça do Trabalho a competência para análise dos pedidos.
Para o deputado, em
que pese a legislação vigente conferir esta competência ao juiz da Vara da
Infância e da Juventude, a matéria é de cunho eminentemente trabalhista, o que
atrai a competência da Justiça do Trabalho, especialmente após a ampliação
ocorrida com a nova redação do artigo 114 da Constituição Federal, conferida
pela Emenda Constitucional nº 45/2004.
A alteração é
defendida também pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do
Trabalho (Anamatra), e pelo Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do
Trabalho Infantil (FNPeti).
Na opinião do
procurador Rafael Marques, o PL cumpre algo já posto desde a Emenda 45, a qual
ampliou a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar todas as
causas advindas da relação de trabalho. "Creio que as autorizações para o
trabalho infantil se põem neste contexto", afirmou, considerando, ainda,
ser um projeto muito bem vindo, por aclarar o alcance da referida Emenda
Constitucional.
Ele entende que a
Justiça do Trabalho está aparelhada para analisar os pedidos de autorização para
o trabalho infantil artístico, pois já lida com questões envolvendo relações de
trabalho e seus riscos para a saúde e segurança do trabalhador.
Oris de Oliveira
também defende a competência da Justiça do Trabalho para análise dos pedidos.
Apesar da longa tradição brasileira - consolidada no Código de Menores de 1927
– de levar todas as questões referentes aos menores, ao Juizado da Infância e
Juventude, para o professor e juiz do Trabalho aposentado, após a EC nº 45/2004
"havendo conflito de interesse em qualquer modalidade de trabalho nas
representações artísticas de crianças e adolescentes, que exija intervenção da
Justiça, a competência é do juiz trabalhista".
Trabalho Infantil
Embora o artigo 7º,
XXXIII da Constituição Federal proíba o trabalho noturno, perigoso ou insalubre
aos menores de 18 anos; e qualquer trabalho a menores de 16 - salvo como
aprendiz, a partir de 14 anos -, em um passado não muito distante, a situação
das crianças era bem pior.
Ocorreram grandes
avanços na legislação brasileira. Para se ter ideia, no século XIX, uma criança
com oito anos podia trabalhar em fábrica de tecidos, de acordo com o Decreto nº
1.313 de 1891 que, apesar de limitar a idade mínima em 12 anos, admitia o
trabalho a partir de oito anos, na função de aprendiz, nas fábricas de tecidos.
Essa realidade
começou a mudar somente em 1924, com a Declaração dos Direitos da Criança, pela
Liga das Nações, considerada um avanço nos direitos infantis. Com a publicação
em 1959 da Declaração dos Direitos Humanos pela Organização das Nações Unidas
(ONU) esses direitos foram ampliados.
O artigo 9 da
Declaração dispõe, dentre outros, que a criança deve ser protegida contra toda
forma de abandono, crueldade e exploração e não será permitido seu trabalho
antes de uma idade mínima adequada. "Em caso algum será permitido que a
criança se dedique, ou a ela se imponha, qualquer ocupação ou emprego que possa
prejudicar sua saúde ou sua educação, ou impedir seu desenvolvimento físico,
mental ou moral."
O mesmo Organismo, 30
anos depois, em 1989, na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da
Criança e do Adolescente (artigo 32), previu a obrigatoriedade de o Estado
proteger a criança do trabalho que constitui uma ameaça à saúde, educação, e
desenvolvimento. Estabeleceu idades mínimas para a admissão em emprego e
regulamentou as condições permitidas para o trabalho do menor.
Flexibilização para
trabalho artístico
No Brasil o trabalho
infantil é proibido para menores de 14 anos, segundo o inciso I, § 3º do artigo
227 da Constituição Federal. Também a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)
no artigo 403 o proíbe para menores de 16, salvo na condição de aprendiz, a
partir dos 14.
Embora a proibição se
estenda a todas as formas de trabalho, quanto ao artístico infantil, existe uma
flexibilização, prevista no artigo 406 da CLT, segundo o qual, o juiz de
Menores poderá autorizar o trabalho em empresas circenses - como acrobata,
saltimbanco e ginasta – e na produção, composição, entrega ou venda de
escritos, impressos, cartazes, desenhos, gravuras, pinturas, emblemas e
quaisquer outras. Desde que a representação artística tenha fim educativo ou a
peça de que participe não prejudique sua formação moral.
Lançando mão desse
artigo alguns veículos de comunicação, especialmente a televisão e o cinema contratam
crianças com idade inferior à prevista na legislação para trabalhar como
atores. Também é possível vê-las atuando como modelos, contratadas pelas
agências de moda e de publicidade.
O Estatuto da Criança
e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), no artigo 149, dispõe que compete à
autoridade judiciária disciplinar, através de portaria, ou autorizar, mediante
alvará, a participação de criança e adolescente em espetáculos públicos e
concursos de beleza. Contudo, a autoridade deverá considerar as peculiaridades
locais, a existência de instalações adequadas, a adequação do ambiente à
eventual participação ou frequência de crianças e adolescentes, entre outras
coisas.
Autorizações
O procurador do
Trabalho Rafael Marques explica que a Convenção nº 138 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), sobre a idade mínima de admissão ao emprego,
ratificada pelo Brasil, admite a possibilidade de trabalho artístico para
menores de 16 anos, em situações excepcionais, individuais e específicas. Mas
também especifica a necessidade de licença ou alvará individual, o qual deverá
definir em que atividades poderá haver o trabalho e quais as condições
especiais.
A psicóloga Mônica
Soares Cazzola lembra que esse alvará individual "é utilizado geralmente
nos casos do trabalho de ator e atriz nas novelas, ou de participações de
menores na mídia televisiva em geral". No caso de atuação de crianças em
matéria publicitária ou em figuração nos canais de televisão, "utiliza-se
um mero termo de cessão de uso de imagem assinado pelos pais", afirmou.
O Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA) admite a participação de crianças e adolescentes em
espetáculos públicos e seus ensaios, desde que a autoridade competente observe
entre outros pontos, o tipo de frequência habitual ao local, o horário da
atividade a ser realizada e a manutenção da frequência à escola.
Justiça e Ministério
Público impõem restrições
Uma recomendação
conjunta será editada pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estabelecendo os requisitos necessários à
concessão de autorização excepcional para o trabalho infantil artístico, a
menores de 16 anos, conforme prevê a Convenção 138 da OIT. Deverão ser
observadas condições muito específicas que garantam a proteção dos direitos fundamentais
das crianças e adolescentes.
A proposta é
decorrente do I Seminário Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil
realizado pelo CNMP, em Brasília, no dia 22 de agosto, em parceria com a
Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ e o Ministério do Trabalho e Emprego
(MTE).
Cerca de 150 membros
do Ministério Público de todos os ramos, juízes, defensores públicos e
representantes do Ministério do Trabalho e Emprego, do Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome e da Secretaria de Direitos Humanos se
dividiram em grupos para propor ações de combate ao trabalho infantil.
Propuseram também, a
solicitação de manifestação técnica do Ministério do Trabalho e Emprego, quando
a autoridade judiciária entender necessária, nos processos judiciais de autorização
para trabalho infantil artístico, como elemento de convencimento do juiz, sobre
a regularidade da situação. Manifestaram ainda que deve haver proibição de toda
e qualquer forma de trabalho infantil artístico que conduza à erotização
precoce; com conteúdo de pornografia infantil, considerando nas duas hipóteses,
o prejuízo psicológico que a atividade proporciona. Estimularam o CNMP e o CNJ
a tornarem permanente um foro interinstitucional de discussão sobre o tema do
trabalho infantil.
TST e sociedade
discutem medidas de proteção a crianças e adolescentes
Na próxima semana, a
partir de terça-feira (9), o Tribunal Superior do Trabalho começa a discutir
com a sociedade temas de séria relevância no combate ao trabalho infantil. E o
trabalho artístico será amplamente analisado pelos ministros juntamente com
especialistas.
O Seminário Trabalho
Infantil, Aprendizagem e Justiça do Trabalho é a primeira ação da Comissão
Nacional de Trabalho Infantil instituída este ano pelo Conselho Superior da
Justiça do Trabalho (CSJT) e Tribunal Superior do Trabalho.
No segundo dia do
evento cinco especialistas participam do painel "Trabalho infantil
esportivo e artístico: conveniência, legalidade e limites": a advogada
Sandra Regina Cavalcante, Antônio Galvão Peres (advogado e Doutor em Direito do
Trabalho pela USP), o professor Marcelo Pato Papaterra, Carlos Eduardo Ambiel
(advogado e mestre em Direito do Trabalho), e o coordenador Nacional de Combate
à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes do MPT, Rafael Dias Marques.
O seminário é o
primeiro passo de um conjunto de ações que agora integram as prioridades do TST
e CSJT, e ocupa o lugar de marco histórico pelas dimensões e importância dos
temas que serão tratados em três dias de intenso debate.
(Lourdes Cortes / RA)
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