Brasília - Em
entrevista à Carta Maior, o assessor especial para Assuntos Internacionais da
Presidência da República, Marco Aurélio Garcia, analisa o momento de tensão
política vivido na América do Sul após a destituição de Fernando Lugo da
presidência do Paraguai, passando ainda pelas eleições no México e pela saída
de Samuel Pinheiro Guimarães do cargo de alto representante do Mercosul.
O ministro defendeu a
importância da cláusula democrática em uma região que já foi tão massacrada por
ditaduras, traçou paralelos entre a queda de Lugo e a derrubada de Manoel
Zelaya da presidência de Honduras e apontou os esforços de isolamento das
forças anti-democráticas no continente.
Garcia ainda rechaçou
as críticas pela incorporação da Venezuela ao Mercosul e rebateu as declarações
do chanceler uruguaio sobre uma suposta pressão brasileira. “É um processo de
luta interna, mas que estão querendo que o Brasil pague essa conta”.
Qual o significado
geopolítico da destituição do Fernando Lugo?
Antes de um
significado geopolítico tem um significado democrático. O processo que foi
utilizado para destituí-lo está eivado de irregularidades do ponto de vista de
normas civilizadas de direito. Ele teve menos de um dia para se defender. As
acusações são absurdas e carecem de provas. Então, há uma grave infração
daquilo que se pode chamar de estado democrático de direito. Não adianta dizer
que a Constituição permite. O Código Penal diz que se você está acusado de
matar uma pessoa, de roubar, etc, você pode ser processado, mas tem um ritual
processual, ritual que não é para postergar o exercício da Justiça, mas para
garantir que o exercício da Justiça será feito.
Na medida em que os
países se associaram no Mercosul, isso passou a ser um problema do Mercosul.
Quando nós criamos a chamada cláusula democrática, primeiro no Protocolo de
Ushuaia I, que foi o que nós evocamos no caso, e depois o de Ushuaia II, que nós
só não evocamos porque não está referendado nos Congressos, o que nós queríamos
criar era um conjunto de salvaguardas que permitisse que o nosso funcionamento
democrático dentro do Mercosul. O Mercosul não é só uma associação econômica,
comercial, é também política. Porque nós e os outros países nos demos isso?
Porque queríamos que a nossas atividades econômicas, comerciais, culturais,
etc, estivessem cercada de determinados princípios políticos. Isso é
particularmente importante numa região que sofreu ditaduras, prolongadas
ditaduras, o Paraguai a mais de todas. Ditaduras não só prolongadas, como
cruéis.
Há pessoas que dizem:
“ah, vocês estão se imiscuindo na vida do Paraguai”. Não, o Paraguai é que se
imiscuiu na vida do Mercosul, o Paraguai é que contrariou normas que ele mesmo
tinha aceito. Por isso que eu digo, antes de ser uma questão geopolítica, é uma
questão essencialmente democrática.
E do ponto de vista
geopolítico?
Nós rompemos com o
critério passado de ter alguns países da região dentro do nosso, entre aspas,
campo. Quando, por exemplo, Itaipu foi construída para suprir um problema
energético do Brasil, também era uma jogada geopolítica dos militares
brasileiros, aceita pelos militares paraguaios, que era uma espécie de política
de contenção com a Argentina. Com o advento da democracia e com a evolução dos
quatro países esses velhos esquemas geopolíticos desapareceram. Nós, ao invés
de termos uma política de contenção, ou uma política de submissão do Paraguai,
de associação hierárquica, queremos ter uma política de associação solidária.
O destino da região
não pode ser assumido por um país, ele tem que ser compartilhado por todos os
países da região, por isso o princípio de cada país um voto, por isso os países
tem capacidade de veto, por isso as decisões tem que ser consensuais, etc. O
problema é que o Paraguai se retirou desse consenso. Não adianta só eles
acharem que fizeram tudo numa boa, a questão é que os outros três não acham
isso.
O senhor vê paralelo
entre o que aconteceu com o Manuel Zelaya em Honduras e agora com o Lugo no
Paraguai?
Tem paralelo. Os dois
presidentes estavam indo para o fim do mandato. Para que retirá-los? Para que,
uma vez que não havia argumentos consistentes? A retirada do Zelaya foi mais
violenta, ele foi retirado de pijama, posto num avião e enviado para a Costa
Rica.
No Paraguai a decisão
foi tomada pelo Congresso, em Honduras pela Corte Suprema com o emprego direto
das Forças Armadas. Se o Lugo tivesse dito que não aceitava a decisão, talvez
eles procurassem utilizar as Forças Armadas, mas de qualquer maneira tem uma
atipicidade em relação aos processos de destituição presidenciais anteriores.
O senhor vê uma
contra-ofensiva de direita para recuperar o território perdido no continente
nos últimos anos?
Eu diria que há um
deslocamento da direita no território, mas das forças anti-democráticas de uma
maneira geral. Nós conseguimos constituir a Unasul, para citar um exemplo. No
Mercosul os governos tinham afinidade política maior, ainda que nós tenhamos
convivido, no governo Lula, com governos que não podiam ser caracterizados de
esquerda, vamos citar o caso do Batlle no Uruguai e do Nicanor no Paraguai. O
convívio era muito bom e conseguimos avançar porque nós nunca ficamos cobrando
certidão de ideologia de ninguém. Esse mesmo critério foi levado para a Unasul.
É claro que há a existência de governos progressistas, ainda que muito
diferentes entre si, mas nós conseguimos estabelecer níveis de apoio, inclusive
com governos que poderiam ser caracterizados como de direita e centro-direita,
Colômbia no período do Uribe. Conseguimos que a Colômbia estivesse na Unasul e
inclusive compartilhasse uma coisa importante naquele momento que foi o acordo
com o Conselho de Defesa Sulamericana. Por quê? Porque os países avaliaram que
a integração era uma coisa importante e que as cláusulas democráticas, que
valem tanto para a Unasul como a para o Mercosul, ainda que com formulação
distintas, seriam respeitadas.
Quero chamar a
atenção para o fato de que a exclusão do Paraguai não se deu somente pelo
Mercosul, se deu por unanimidade pela Unasul e aí tem governos que não podem
ser caracterizados como governos muito afins do ponto de vista
político-ideológico. Então, esses são os problemas que estão sobre a mesa hoje.
Há no horizonte
alguma possibilidade de novas sanções a serem tomadas com o Paraguai?
Acho que essas
sanções são suficientes. Nós fizemos uma clara opção para não impor sanções de
natureza econômica porque elas penalizam basicamente as populações. Os
governantes sempre encontram um jeito de resolver os seus problemas. E esses
governos são transitórios. O governo atual no Paraguai vai durar mais um ano e
um mês, em abril do ano que vem o Paraguai terá a oportunidade de refazer o
sistema político. Nós não queremos dizer quem é que tem que ser presidente do
Paraguai, nem que força tem que ser hegemônica. Nós temos que ver simplesmente
se o processo vai ser equilibrado, democrático. Nós já convivemos com governos
do Paraguai que não tinham uma proximidade tão grande conosco.
A possibilidade da
volta de Lugo ao poder está descartada?
O Lugo é uma
referência na política paraguaia, agora isso é problema dos paraguaios, eles é
que vão ter que definir.
A entrada da
Venezuela foi criticada, com base inclusive na posição do chanceler uruguaio, sobre
uma suposta pressão do Brasil para essa entrada. De outro lado, acusaram o
Brasil de criticar um autoritarismo no Paraguai enquanto admite um regime
“autoritário” no Mercosul. Como o governo recebe essas críticas?
Em primeiro lugar é
bom ter claro que o ingresso da Venezuela no Mercosul foi aprovado pelo
Congresso brasileiro, pelo argentino e pelo uruguaio. Acho que o uruguaio foi o
primeiro a aprovar, pelo menos primeiro que o Brasil foi. Portanto, não me
venham dizer hoje que é indesejável a presença deles. Uma pessoa pode achar, um
partido pode achar, tudo bem, agora, os canais que decidem isso nos três países
aprovaram.
Segundo, o Paraguai
está suspenso das esferas políticas do Mercosul, portanto ele não é mais voto.
Antes éramos quatro votos, agora somos três e os três se puseram de acordo em
torno disso. Quarto, acho insultante em relação ao presidente Mujica dizer que
ele foi na conversa da presidenta do Brasil ou da Argentina. O presidente
Mujica é um homem de extraordinária sensibilidade e experiência política, viveu
as circunstâncias mais difíceis, tem um currículo impecável, então, acreditar
que ele seria leniente no que diz respeito a uma decisão de natureza tão
importante quanto essa é insultuoso a ele. Eu tive oportunidade de conversar
com ele e o encontrei muito tranqüilo. E ele disse “essa decisão nós tomamos,
eu assumo plenamente a responsabilidade disso”.
Então, nos
surpreendeu muito a posição adotada pelo chanceler Almagro, que estava lá e
poderia ter sido enfático nisso, ou então se dissociar. O dia que eu quiser me
dissociar de uma política da presidenta Dilma, eu pego o chapéu e digo “olha,
não estou de acordo, vou embora”. Agora o que nós estamos assistindo é um
processo de luta interna, mas que estão querendo que o Brasil pague essa conta,
vamos ter claro isso.
A presidenta Dilma
antes de ir para reunião disse que tinha duas preocupações: em primeiro que a
operação fosse juridicamente adequada, por isso levou o advogado geral da União
para ir lá e atestar. Pareceres da Advocacia Geral da União são vinculantes. O
segundo comentário que ela fez foi o seguinte: no entanto, mesmo sendo
juridicamente correto, se houver qualquer objeção política seja da Argentina ou
do Uruguai, nós estamos fora, essa é uma decisão que tem que ser tomada de 3 a
0, não por 2 a 1. E foi tomada por 3 a 0.
Sobre o México, como
o governo tem visto o questionamento quanto ao resultado eleitoral?
Nós não temos
instrumentos mais aprofundados. Trabalhamos com as informações que vem da
embaixada brasileira, que nos informa que o processo foi, a grosso modo,
correto, que houve uma diferença relativamente importante de votos, 38% a 31%,
e que, portanto, o presidente eleito é o Peña Nieto. Nós não temos condições de
avaliar no momento atual as denúncias que o Andrés Manuel López Obrador fez,
até porque nós não conhecemos o teor dessas denúncias. Não é uma questão de
estar de acordo. Eu posso não estar de acordo com muitas coisas, mas não
necessariamente eu tenho razão. Evidentemente nós vamos ficar atentos, mas no
momento atual se nos aparece uma situação na qual o eleito é o Peña Nieto,
assim, a presidenta telefonou para ele para cumprimentá-lo. Caberá agora a
Obrador fundamentar as suas denúncias. Não é como na eleição anterior, há seis
anos, quando ele perdeu por 0,7%, agora foi por 7.
Mas a nossa
preocupação é que a mudança que está ocorrendo no México possa trazê-lo de novo
para a América Latina. O México em outras épocas teve um papel muito
importante, foi durante muito tempo o único país da América Latina que mantinha
relações com Cuba. Foi um país importante no processo de pacificação e
democratização da América Central, no caso da Nicarágua, El Salvador e
Guatemala, três países onde nós tivemos movimentos revolucionários muito
grandes, importantes, massivos, que aspiravam ao socialismo, mas não chegaram
lá, mas chegaram na democracia.
É interessante
observar isso: a democracia foi conquistada nesses países pelas armas, depois
teve um acordo, etc, e o México sempre teve um papel muito importante. Nós
gostaríamos que o México pudesse ter esse papel... Há alguns analistas que
estão dizendo “ah como o México se encolheu o Brasil ocupou o espaço dele”.
Isso é bobagem, o Brasil não ocupou espaço nenhum, porque há um espaço é
ilimitado que esses dois ou outros países podem perfeitamente ocupar. Seria
muito bom, inclusive, que a gente pudesse ocupar junto com o México, e que o
México pudesse desempenhar naquela região um papel que ele já desempenhou.
E eu sei porque em
muitas reuniões, como as do Foro de São Paulo e outras instâncias
internacionais, nós assistimos concretamente manifestações quase de gratidão da
parte até de setores revolucionários em relação ao México, ao que ele foi no
passado. Por outro lado, ele está com graves problemas internos e nós temos a
expectativa e a esperança que esses problemas possam ser resolvidos pelo
próximo governo. Um país que perde 50 mil pessoas por obra do crime organizado
é um país que está sofrendo muito. E é uma grande economia, um grande espaço
territorial, uma grande população e sobretudo uma grande política, um país com
uma tradição política que nós no Brasil não temos. Um país inclusive que foi
refundado no começo do século XX por um movimento revolucionário de grande
importância. As pessoas ficam muitas vezes pensando na revolução soviética, na
revolução chinesa e as vezes esquecem que houve uma grande revolução no México.
O senhor pode
comentar sobre a saída de Samuel Pinheiro Guimarães do cargo de alto
representante do Mercosul?
Não é uma saída, que
eu saiba, que expresse divergências políticas, por não estar de acordo com a
política do Mercosul, com a política externa brasileira, muito pelo contrário.
Mas ele reclamou
falta de apoio.
Ele reclamou, mas não
acredito que tenha sido falta de apoio político, mas falta de apoio institucional.
Eu não sei se essas demandas de apoio institucional chegaram aos ouvidos de
todos os presidentes de forma adequada. O Samuel é uma pessoa de grande valor,
de grande qualidade, de grande tradição, nós todos lamentamos a saída dele. Eu
pessoalmente lamento muito. Agora não posso esconder que acho que ele escolheu
um momento inadequado. Momento em que o Mercosul está vivendo uma grande
tensão. Acho que esses não são momentos para você sair, a menos que tivesse uma
posição contrária às orientações que o Mercosul tomou, o que não é o caso, eu
sei que ele deve estar absolutamente de acordo com as posições que o Mercosul
tomou. Acho que simplesmente ele não se sentiu beneficiado de tudo aquilo que
ele acreditava que fosse necessário.
Não foi por falta de
apoio brasileiro?
Não e menos ainda por
discordância política, muito pelo contrário, nós tínhamos uma afinidade enorme.
Talvez não tenha havido o melhor diálogo entre o embaixador Samuel e o
Ministério das Relações Exteriores, com a presidência. Mas, essa saída abrupta
em meio a essa crise não me dá nem elementos para avaliar concretamente se essa
foi uma solução inevitável.
Por: Vinicius Mansur,
para Carta Maior Em: 05/07/2012 às 10:32:48
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